“Se tiverem paciência em 2056 terão acesso à ata”. Perante os jornalistas, em Guimarães nesta quarta-feira, António Costa recorreu à ironia para fintar perguntas sobre o seu silêncio no Conselho de Estado do dia anterior. Mas o estado de espírito no PS com as últimas duas reuniões do órgão de consulta do Presidente não é de brincadeira. Um Presidente a assumir o papel de líder de oposição e a ter no Conselho de Estado uma espécie de órgão de fiscalização do Governo — que tem fugas de informação “seletivas”, criticadas durante a reunião de terça — é uma realidade que o PS quer travar, daí a postura do primeiro-ministro nesta última reunião. Ao contrário do que o Presidente acredita, o silêncio reflete mesmo uma reação socialista contra a postura de Marcelo que acreditam estar a fabricar um clima de tensão.
No topo do partido recorda-se que “o Conselho de Estado é um órgão de consulta do Presidente e não de inquirição e fiscalização do primeiro-ministro. Esta última função é da Assembleia da República”. Outro alto dirigente, confrontado com a noticia da falta de resposta de Costa às críticas que lhe foram apontadas na primeira reunião por alguns conselheiros, comentava com o Observador logo na noite de terça-feira que “não é assim que funciona o Conselho de Estado. Isso é na Assembleia da República“.
“O palco do debate político é a Assembleia da República. Aí faz-se a discussão política. O Governo responde perante a Assembleia da República“, afirma outro socialista que nega, no entanto, existir mal-estar com o que se passou no Conselho de Estado. Mas a tensão já é audível entre a maioria socialista.
“Já não é leitura de sinais, avisos à navegação ou magistratura de influência, é uma magistratura de instabilidade“, resume um deputado do partido que descreve “um Presidente a brincar com o Estado” e a “contagiar instituições sagradas”, como o Conselho de Estado. Outro deputado diz mesmo que “Marcelo está a exagerar”, outro socialista acusa-o de tentar condicionar o Governo e outro ainda fala antes numa “tentativa geral de exacerbar a reunião de julho”.
Se uns são mais cautelosos em atribuir as críticas a um elemento concreto, o certo é que ele aparece em quase todas as entrelinhas e alguns socialistas nomeiam mesmo o destinatário: Marcelo Rebelo de Sousa. “As fugas de informação são deliberadas e instrumentalizadas e não são indissociáveis do calendário eleitoral ou das candidaturas à Presidência”, diz um socialista que não hesita em responsabilizar Marcelo de ser um dos principais responsáveis pela criação deste clima. Afinal, o Presidente “é o dono da casa” e “as fugas de informação têm a cumplicidade de quem organiza” a reunião. “Está a querer ser protagonista“, afirma outro socialista que acredita que o Presidente está a querer “manter as atenções. Os Conselhos de Estado não servem para isso”, argumenta.
Santos Silva atirou-se às fugas de informação no Conselho de Estado
Um destacado socialista dá razão à atitude de Costa na reunião de terça e justifica-a com a “forma como o Presidente está a instrumentalizar o Conselho de Estado para tentar condicionar ilegitimamente o Governo. Marcelo está a perturbar o normal funcionamento das instituições”, comenta ao Observador. Além disso também encontra motivos para a postura do primeiro-ministro na reunião de conselheiros na “fuga de informação verificada na reunião anterior”, referindo-se concretamente à notícia avançada pelo Observador sobre a defesa por parte do primeiro-ministro da equiparação de buscas judiciais aos partidos às buscas realizadas a escritórios de advogados, na reunião de julho.
Costa defendeu no Conselho de Estado mudança de regras das buscas judiciais aos partidos
Esta quarta-feira, António Costa recusou sempre falar no conteúdos das intervenções, escudando-se na regra de confidencialidade dos conselheiros, no entanto, foi duro com “quem tem feito fugas seletivas ou contado mentiras do que acontece” nessas reuniões e em como isso “presta um péssimo serviço às instituições, à democracia e ao Conselho de Estado”. Acrescentou ainda que “o Conselho de Estado é um órgão de consulta do Presidente onde as pessoas se devem sentir livres para se expressar ou não se expressar de forma a que o Presidente possa beneficiar dessa informação”, tocando num ponto que também poderia justificar o seu silêncio.
O presidente da Assembleia da República terá sido o porta-voz da ala socialista contra as fugas de informação dentro do próprio Conselho de Estado, segundo apurou o Observador. Na sua intervenção na reunião, Augusto Santos Silva chamou a atenção para essas fugas, naquilo que foi visto por conselheiros de outra área política como “uma tentativa de condicionar as intervenções, lançando suspeitas sobre todos”.
Trazer crise para a ‘rentrée’ irrita PS
Os socialistas estão convencidos que Marcelo tem a intenção deliberada de criar “um clima de tensão”. E para essa tese contribui, por exemplo, que o Presidente tenha transportado até setembro a crise política que os socialistas desejavam que o verão pudesse ter feito esquecer. “Tentou-se fazer uma coisa com a reunião de julho e perante a frustração com a expectativa de uma dissolução, transportou-se para setembro um clima que não estava lá”, analisa um socialista.
Outro é mais direto e acusa o Presidente de ter “criado uma ponte mediática entre aquela altura [da crise política] e agora. Quis acicatar os casos e casinhos”, considera ainda. “Quis tirar desforra do último Conselho de Estado que não teve os efeitos que desejava. É preciso não esquecer que na altura se falava na dissolução da Assembleia da República”, lembra outro deputado do PS.
O repisar de temas surgiu mesmo na intervenção que Marcelo levou ao Conselho de Estado, de acordo com o que foi noticiado pelo Observador, mas Costa não comentou as palavras de Marcelo nem mesmo as críticas de que tinha sido alvo na reunião anterior, nomeadamente pelo grupo dos cinco: Cavaco Silva, Luís Marques Mendes, Miguel Cadilhe, Lobo Xavier e Francisco Pinto Balsemão.
A intenção foi não entrar em debate político num órgão que é de aconselhamento do Presidente e que Costa quer evitar que fique associado a qualquer ideia de fiscalização da sua ação governativa — daí a repetição que muitos socialistas têm feito nas últimas horas das regras básicas do funcionamento de órgãos de soberania e também dos órgãos que os podem aconselhar, caso do Conselho de Estado. Esta postura de Costa está a ser vista no PS como mais um momento de traçar limites a Marcelo, depois do episódio-Galamba, em que Costa não demitiu o ministro das Infraestruturas, como o Presidente queria e fez saber.
Horas antes de começar a reunião de conselheiros do Presidente, o primeiro-ministro foi questionado sobre os avisos de Marcelo em relação ao diploma da habitação — Marcelo avisou que o assunto não ficava encerrado pela confirmação do PS — e fez logo questão de definir papéis no palco político: “Ser primeiro-ministro é diferente de ser líder da oposição ou de outros órgãos. A função de um primeiro-ministro não é [a de] comentador, mas sim [a de] fazedor. Cumpre-nos executar, identificar problemas”. Se o recado não tinha (o histórico comentador) Marcelo como destinatário, pareceu.
Já o Presidente está em negação sobre a afronta que o primeiro-ministro lhe fez. Marcelo Rebelo de Sousa diz que António Costa desmentiu publicamente ter ficado em silêncio no Conselho de Estado “contra o Presidente da República”. Ora, o primeiro-ministro, na verdade, não disse textualmente isso. Costa disse apenas que não tinha “nenhum diferendo” com Marcelo, mas não justificou a razão do silêncio, alegando que não comentava publicamente o que se passava naquele órgão consultivo do chefe de Estado.
Outra frente que o PS aponta — aí em provocação a Luís Montenegro — é a ocupação do lugar de líder da oposição por Marcelo, em vez do líder do PSD. “Pobre Montenegro que por mais que se ponha em bicos de pés, tem sempre tanta gente a tapá-lo”, atira um socialista com ironia.
Em declarações aos jornalistas, também esta quarta-feira, o primeiro-ministro tocou neste mesmo assunto ao responder a Montenegro — que ao acusou de ter amuado no Conselho de Estado — que “o líder da oposição é ele e o debate político” que tem de “fazer é com ele e não em qualquer outro sítio”. Não é nem com Marcelo, nem com os conselheiros de Estado.