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O que ficou estipulado nos acordos entre os Emirados, o Bahrain e Israel?

Os Emirados Árabes Unidos (EAU) e o Bahrain acertaram os seguintes pontos com Israel:

  • Estabelecimento de embaixadas de parte a parte, o que leva ao reconhecimento implícito or parte dos EAU e do Bahrain do Estado de Israel e das suas fronteiras;
  • “Suspensão” dos projetos para novas anexações na Cisjordânia, conforme previsto e prometido por Benjamin Netanyahu (que eram em si muito polémicas e iriam trazer problemas diplomáticos ao primeiro-ministro israelita);
  • Cada país continuará os seus “esforços” para conseguir uma “resolução justa, abrangente e duradoura para o conflito israelo-palestianiano”;
  • Abertura para acordos bilaterais de investimento, turismo, voos diretos, segurança, telecomunicações, tecnologia, energia, saúde, cultura, ambiente e “outras áreas de benefício mútuo”.
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Como era até aqui a relação entre os Emirados Árabes Unidos e o Bahrain com Israel?

Era, como lhe chamou o decano das Relações Internacionais Mohammed Ayoob, um “segredo descoberto”.

Os países da Liga Árabe (onde se incluem o Bahrain e os Emirados Árabes Unidos) não reconheciam até aqui a existência legal de Israel — e isso era uma posição com raízes que remontavam até 1967.

Nesse ano, após vencer a Guerra dos Seis Dias, Israel ocupou a Cisjordânia, a Faixa de Gaza, os Montes Golã e também territórios no Sul do Líbano. Em reação, os países da Liga Árabe reuniram-se em Khartoum, no Sudão, e ali fixaram uma postura de total intransigência perante o Estado judaico com os seus “Três Nãos”: não à paz com Israel, não ao reconhecimento de Israel, não a negociações com Israel.

De todos os países que assinaram aquela declaração, apenas dois romperam o compromisso: o Egito em 1979 e a Jordânia em 1994, que por intermédio também dos EUA normalizaram as relações com Israel. Os restantes, voltaram a reunir-se na Liga Árabe e, em 2002, firmaram a Iniciativa Árabe de Paz. Ali, admitiam a possibilidade de reconhecerem Israel — mas com a condição da retirada desta dos territórios ocupados em 1967, condição que o Estado judaico não aceitou e tampouco defendem os seus principais partidos.

Agora, 18 anos depois, há mais dois países da Liga Árabe que abdicam das suas condições anteriores e aceitam reconhecer Israel e as suas fronteiras atuais. Este desenvolvimento é, pois, do ponto de vista formal um acontecimento histórico.

Porém, um olhar mais atento levará a entender que, apesar de muitos países da Liga Árabe terem mantido até aqui a postura dos “Três Nãos”, muitos deles (incluindo os EAU e o Bahrain) têm-lhe dito “Sim” várias vezes ao longo dos últimos anos.

Por isso, embora os acordos assinados esta terça-feira entre os EAU e o Bahrain de um lado e Israel do outro na Casa Branca sejam descritos como sendo de paz, o facto é que estes países estavam longe de estarem em guerra — antes pelo contrário, desenvolviam há cerca de uma década profícuas relações informais e de alguma forma públicas e declaradas.

Os exemplos desta aproximação entre os EAU e Israel são vários.

Em 2009, Israel apoiou a candidatura dos EAU para que a sua capital, Abu Dhabi, se tornasse na sede para a Agência Internacional para as Energias Renováveis (IRENA, na sigla inglesa) — um apoio que pelo menos não atrapalhou essa candidatura e possivelmente até a ajudou, já que foi lá que aquela agência se instalou aquando da sua fundação. Em 2015, Israel deu o primeiro passo para uma aproximação diplomática aos EAU ao estabelecer uma comissão permanente na IRENA. Em 2019, os EAU piscaram o olho a Israel ao anunciar a construção de uma sinagoga — a primeira do país, que queria passar uma imagem não só de tolerância tout court, como de tolerância específica perante Israel. E já este ano, com a Expo 2020 no seu território, os EAU autorizaram que Israel tivesse o seu próprio pavilhão — algo que só a Covid-19 impossibilitou.

Isto não quer dizer que esta não tenha sido uma aproximação sem problemas —  o maior deles possivelmente quando a Mossad (serviços secretos de Israel) matou Mahmoud al-Mabhouh, comandante do Hamas, num hotel no Dubai, em 2010.

Porém, ao assinarem um acordo de paz, estes dois países acabam por formalizar um entendimento que já vinha de trás. Muito para lá de marcar um momento do presente entre estes dois Estados do Médio Oriente, o acordo abre-lhes novas possibilidades — e pode levar a alterações indeléveis no equilíbrio de poderes no Médio Oriente, como explicamos mais à frente.

“Para aqueles que estão familiarizados com o desenvolvimento das relações entre Israel e os EAU ao longo dos últimos anos, este acordo é mais uma festa de coming out do que uma quebra radical com o statu quo“, escreveu Mohammed Ayoob na National Interest. “Pode ter importância simbólica, mas não acrescenta muito à substância das relações entre os dois países”.

Outro “segredo descoberto” é também extensível às relações entre o Bahrain e Israel. Neste caso, esse segredo foi destapado pela Wikileaks, que deu conta de que o rei daquele pequeno Estado do Golfo Pérsico, Hamad bin Isa al-Khalifa, se gabava de ter relações diretas com a Mossad. Além disso, a correspondência entre diplomatas norte-americanos demonstrava ainda que o monarca do Bahrain tinha dado ordens ao seu embaixador em Washington D.C. para deixar de chamar Israel de “inimigo” ou “entidade sionista”.

Estes “segredos descobertos”, tanto dos EAU como do Bahrain, foram-se desenrolando apesar da Iniciativa Árabe de Paz, firmada pelos Estados da Liga Árabe em 2002. Entre os seus 10 pontos, constava uma condição que para os sucessivos governos de Israel foi sempre inaceitável: a restauração das fronteiras de 1967 (isto é, pré-Guerra dos Seis Dias), o que implicaria a retirada do Israel dos territórios que ocupou na sequência daquela guerra da qual saiu vitoriosa.

Porém, ao abrir mão da retirada de Israel destes territórios (um tema que para a maior parte dos Estados do Golfo deixou já de ser uma questão de princípio e passou a ser uma mera formalidade), os EAU e Bahrain acabam por declarar obsoleta a Iniciativa Árabe de Paz, que passa a ser uma questão do passado — e ultrapassada agora por uma nova perspetiva de futuro para a região e os seus vários atores.

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O que é que Israel, os EAU, o Bahrain e Donald Trump ganham com este acordo?

Individualmente, cada um deles tem pontos a ganhar com este acordo.

Do lado de Israel, pode haver ganhos políticos imediatos para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Apesar de abrir mão da sua promessa eleitoral mais sonante (novas anexações na Cisjordânia), o primeiro-ministro israelita concretiza assim um feito que poucos antecessores conseguiram igualar — foi o caso de Menachem Begin, que assinou o tratado de paz com o Egito em 1979; e de Yitzhak Rabin, em 1994, com a Jordânia. Isso significa, acima de tudo, que mais um país árabe — e o primeiro do Golfo Pérsico — reconhece Israel e as suas fronteiras atuais.

epa08427872 A handout photo made available by Adina Valman / Knesset spokespersons' office shows Israeli Prime Minister Benjamin Netanyahu during a swearing in ceremony of his new unity government with election rival Benny Gantz, at the Knesset, Israel's parliament, in Jerusalem, Israel, 17 May 2020. EPA/ADINA VALMAN / HANDOUT MANDATORY CREDIT HANDOUT EDITORIAL USE ONLY/NO SALES

Netanyahu concretiza assim um feito que poucos antecessores conseguiram igualar

Quanto aos EAU, também há ganhos diretos. Perante a comunidade internacional árabe, fica o aparente triunfo de terem sido impedidas novas anexações por parte de Israel — um feito, porém, relativizado pela garantia de Benjamin Netanyahu de que as anexações não foram canceladas mas apenas “suspensas”. Além disso, os EAU conseguem através da formalização das suas relações com Israel o fortalecimento dos laços com os EUA, que são de elevada importância para o seu futuro geopolítico e também militar. Há vários anos que os EAU insistem junto de Washington D.C. para que lhes sejam vendidos F-35 — e, apesar de várias resistências tanto no Congresso como também de Israel, Donald Trump já disse que não tem “problema nenhum” com tal venda.

Da parte do Bahrain, pequena ilha do Golfo Pérsico e importante aliado dos Estados Unidos na região, o acordo pode levar a um aumento do sistema de defesa aéreo norte-americano implementado naquele país — um feito importante uma vez que em 2018 os EUA estiveram perto de retirá-lo.

Nos EUA, Donald Trump pode retirar várias vantagens deste acordo que ajudou a construir — com o contributo ativo do seu genro e conselheiro sénior, Jared Kushner. Primeiro, e à semelhança do que Benjamin Netanyahu retira em Israel, Donald Trump torna-se no terceiro Presidente dos EUA (depois dos democratas Jimmy Carter e Bill Clinton) a conseguir juntar líderes árabes para aceitarem a existência do Estado judaico e para com ele formalizarem relações diplomáticas. Segundo, ao conseguir juntar estes países até aqui desalinhados, Donald Trump não hesitará em utilizar este feito em ano de eleições — e em tentar capitalizar com ele junto do eleitorado mais conservador, em particular os evangélicos, a sua base de apoio mais forte. Terceiro, Donald Trump pode conseguir novos e mais lucrativos contratos de venda de armas e artefactos bélicos com os EAU, tal como acordos militares que possam aprofundar a presença militar dos Estados Unidos naquele país do Golfo Pérsico — onde, para já, duas bases (uma naval e outra área) e um porto, com um total de 5 mil militares no terreno.

Mas tudo isto foi essencialmente possível porque, além de interesses individuais, todos estes países dão com este acordo um passo de gigante (e que pode levar a muitos outros) em direção a um objetivo que todos tomam como prioritário na região: isolar o Irão.

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O que é que o Irão tem a ver com isto?

No fundo, tudo.

Como já foi explicado na pergunta “Como era até aqui a relação entre os Emirados Árabes Unidos e o Bahrain com Israel?”, a postura dos países da Liga Árabe perante Israel foi sofrendo importantes alterações ao longo das décadas. Dos “Três Nãos” de 1967, passaram até à Iniciativa Árabe de Paz de 2002 e, depois desta, a retoma de facto de laços apesar de não sê-lo de jure.

A dinâmica destas alterações tem sido a de uma continuação de Israel no seu rumo e de um vergar de postura por parte da Liga Árabe. Isto porque, olhando para a região em que estão inseridos os países da Liga Árabe (que tem na Arábia Saudita o seu membro mais influente e poderoso) estão a chegar à conclusão que mais importante do que inverter o rumo de Israel será parar o da segunda maior potência da região e seu adversário histórico: o Irão.

Este é o verdadeiro motor dos acordos firmados esta terça-feira na Casa Branca — e de todos os seus semelhantes sobre os quais já se especula. A urgência de conter o Irão é sentida em iguais partes por Israel e pelos países árabes da órbita da Arábia Saudita — e é também um interesse vital dos Estados Unidos, seus aliados.

“A relação estratégica EAU-Israel foi motivada pelos medos mútuos do Irão e foi formalizada pelos Estados Unidos”, disse ao Washignton Post Karim Sadjadpour, analista para o Médio Oriente do think tank Carnegie Endowment for International Peace.

epa08638743 A handout picture made available by the Supreme Leader Office shows Iranian Supreme Leader Ayatollah Ali Khamenei speaks during a government video conference in Tehran, Iran, 01 September 2020. Media reported that Khamenei said that UAE has betrayed the world of Islam and Arab nation by opening relationship with Israel. EPA/SUPREME LEADER OFFICE HANDOUT HANDOUT EDITORIAL USE ONLY/NO SALES

Estes acordos são um “pesadelo estratégico” para Teerão

Mohammed Ayoob também aponta nessa direção, referindo num texto para a National Interest que para os EAU a aliança com Israel é uma “apólice de seguro” contra o Irão. “Os EAU e a maior parte dos outros membros do Conselho de Cooperação do Golfo agora olham para Israel como um país ‘protetor’ contra o Irão porque não estão seguros se os Estados Unidos, atualmente em modo de retirada, estarão dispostos a ajudá-los em caso de confronto com Teerão.”

Também na National Interest, Alma Keshavarz e Kiron Skinner referem que o conjunto de países árabes que agora reconhecem Israel (Egito, Jordânia, EAU e Bahrain, sendo que dizem que é “duvidoso” que este último tenha avançado sem “o acordo tácito da Arábia Saudita”) têm “influência suficiente para abrir caminho a uma era que defina a união árabe e crie uma barreira contra as ambições regionais do Irão”.

Também Maysam Behravesh e Hamidreza Azizi acreditam que estes acordos trarão várias desvantagens para o Irão, significando uma “grave ameaça” e um “pesadelo estratégico” para Teerão, conforme escreveram na Foreign Policy.

“A animosidade e a alienação entre [os países] árabes e Israel funcionou até aqui como um baluarte geopolítico que protegia os interesses iranianos das campanhas hostis de Israel com os EUA”, escrevem aqueles dois especialistas na geopolítica do Médio Oriente.

Ora, a partir do momento em que mais países previamente alinhados com os EUA assumem o seu entendimento com Israel, o Irão deixa de gozar desse “baluarte” — e passa a ser o principal adversário de todos eles.

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Existe a possibilidade de serem feitos mais acordos?

Sim.

Quando o acordo entre Israel e os EAU foi anunciado a 13 de agosto, foi amplamente noticiado que o próximo a dar o mesmo passo seria o Bahrain. Um mês depois, a 11 de setembro, essa notícia confirmou-se — e o Bahrain esteve mesmo presente na cerimónia de assinatura desta terça-feira.

Horas antes da cerimónia que teve lugar na Casa Branca, Donald Trump anunciou que as conversações estavam “muito avançadas” com “mais cinco países”.

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Que consequências é que estes acordos (e outros semelhantes) podem ter na região?

Além do isolamento do Irão (questão já coberta na pergunta “O que é que o Irão tem a ver com isto?”), há outras dinâmicas que podem surgir na sequência dos acordos desta terça-feira e que podem vir a ser intensificados caso mais países sigam o rumo dos EAU e do Bahrain.

  • Solidificação das fronteiras de Israel — e as consequências no conflito israelo-palestiniano

A partir do momento em que ainda mais países do Médio Oriente passarem a reconhecer as fronteiras de Israel, estas poderão deixar de ser um entrave na região.

Este possível desfecho é visto por alguns analistas como um fator que pode levar a uma continuação ou até um recrudescimento da posição palestiniana — e, assim sendo, do conflito com Israel.

“A política preternatural e pró-Israel de Trump alienou a Autoridade Palestiniana e pôs em causa a capacidade dos EUA de agirem como um mediador imparcial”, escreveu Grace Wermenbol, do Middle East Institute. Como tal, acredita que é “improvável” que estes acordos tragam “mais do que isto” — ou seja, paz entre israelitas e palestinianos.

Do seu lado, Mohammed Ayoob acredita que é precisamente a chegada a este aparente ponto de não-retorno que poderá levar os palestinianos à mesa de negociações — e abdicar da solução dos dois estados. “Este acordo devia convencer os que ainda permanecem céticos de que a única opção para os palestinianos é a de trabalhar para estabelecer um só Estado democrático na terra que vai do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo, com a garantia de direitos iguais para todos os seus habitantes”, escreveu aquele académico na National Interest.

  • Corrida às armas (americanas)

Um dos temas que tem acompanhado as notícias da normalização das relações dos EAU com Israel tem a ver com a venda de armas àquele país árabe por parte dos EUA.

Esta não é uma realidade nova — em plena guerra do Iémen (em que os EAU e a Arábia Saudita combatem, cada um do seu lado, milícias xiitas apoiadas pelo Irão), Donald Trump contornou a decisão do Congresso de proibir a venda de armas aos EAU para usar naquele conflito. Para conseguir fazer essa venda, o Presidente dos Estados Unidos declarou o papel do Irão no Iémen como uma “emergência nacional” — e assim vendeu armas e artefactos militares no valor de 8 mil milhões de dólares àquele país árabe e também à Arábia Saudita.

Iémen. O que se passa na guerra da qual ninguém quer saber?

Entre o pacote militar vendido pelos Estados Unidos aos EAU, estavam incluídos aviões de combate F-16. Porém, com o passo agora dado com a normalização de relações com Israel, os EAU alimentam a esperança antiga de terem acesso à coqueluche dos aviões de combate: os F-35.

Donald Trump disse esta terça-feira que não teria “problema nenhum” em fazer essa venda — e, apesar de a proibição do Congresso se manter, os instrumentos do Presidente dos EUA para a contornar também continuam a ser viáveis.

epa08662177 US President Donald J. Trump (C) and First lady Melania Trump (Back-R) exit Marine One as they return to the White House, in Washington, DC, USA, on 11 September 2020, after attending a Flight 93 National Memorial 19th Anniversary of the 9/11 terrorist attack Observance in Shanksville, Pennsylvania. EPA/Chris Kleponis / POOL

Trump admite vender aviões de combate F-35 aos Emirados Árabes Unidos

Ao Washington Post, o antigo vice-conselheiro nacional para Israel, Chuck Freilich, disse que este pode ser um “desenvolvimento perigoso” de um ponto de vista “puramente militar”.

Além de uma venda deste tipo levar a um aumento considerável das capacidades aéreas dos EAU (por si só avançadas e fruto de uma aposta nos últimos anos), poderia levar à obrigação da venda de mais e novas armas a Israel. Isto porque os EUA têm desde 2008 uma lei que os obriga a darem a Israel uma “vantagem militar qualitativa” — algo que da parte de Israel já foi deixado claro que será cobrado caso vá para a frente a venda dos F-35 aos Emirados Árabes Unidos.