Esta newsletter é um conteúdo exclusivo para assinantes do Observador. Pode subscrever a newsletter aqui e fazer aqui a sua assinatura para assegurar que recebe as próximas edições. |
Este sábado realizou-se a maior manifestação de professores desde 2008 e sem o apoio dos “sindicatos institucionais”, sinal de que na raiz desta revolta não estão apenas as reivindicações sindicais do costume — até porque em crises destas não há “mecanismo” que lhes valha. |
|
Em 2008, quando pela primeira vez houve uma enorme mobilização de professores e num tempo em que os blogues ainda eram importantes, comecei a seguir um que se chamava “A Educação do Meu Umbigo” e, depois, enviei uma mensagem ao seu autor, Paulo Guinote, para falar com ele. Encontrámo-nos num centro comercial da Margem Sul (ele dá aulas na Baixa da Banheira) e foi uma das conversas que na altura me ajudou a perceber porque é que a avaliação dos professores era uma boa ideia pessimamente aplicada – kafkianamente aplicada. Agora que os professores estão de novo à beira de um ataque de nervos regressei ao seu blogue – que agora se chama “O Meu Quintal” – para estar melhor informado. |
Paulo Guinote é alguém que defende muitas posições com que não concordo mas devo dizer que sempre me foi possível conversar com ele e, através dele, perceber a “temperatura” do meio escolar. Ora sucede que, por estes dias, descobri por entre o imenso que vai publicando uma “carta aberta”, assinada por Mário Rui Simões Rodrigues, que suponho ser um professor do distrito de Leiria neste momento de licença sem vencimento, onde, a propósito das contradições e desmentidos do ministro da Educação, ele, “humílimo professor”, lhe perguntava se eram ou não verdadeiros os seguintes factos: |
‒ Exames Nacionais só a algumas disciplinas e para acesso à universidade;
‒ Provas globais facílimas, a pouquíssimas disciplinas, sem contarem efectiva para a avaliação, para enganar os alunos e iludir os pais;
‒ Programas TODOS revogados, substituídos por “aprendizagens essenciais” (fraude para todos os alunos passarem);
‒ Testes quase suprimidos. O Sr. João Costa é seguidor da moderníssima pedagogice: Fim da avaliação e fim do currículo;
‒ Passagem, materialmente, obrigatória: a avaliação é uma mera formalidade, impondo aos professores resultados ficcionais, para não dizer fraudulentos. |
Destaco estas questões por uma razão simples: não estando eu de acordo com algumas das motivações próximas dos professores (até porque defendo há muito que a sua colocação nas escolas não pode continuar a obedecer a uma lista graduada e deve passar, no essencial, para as escolas, e lamento, tal como o Alexandre Homem Cristo, o aparente recuo do Ministério neste domínio), não considero razoável atribuir apenas a motivações sindicais o enorme mal-estar que existe no sector ou pensar que a mobilização gigantesca deste sábado (a segunda maior manifestação de sempre de professores, sendo que para esta não contribuíram as máquinas dos sindicatos mais poderosos) tem apenas motivações financeiras. |
Sempre que se desceu ao terreno para tentar explicar as motivações dos professores (como nestes retratos de vida de três docentes) ou quando se leu textos sobre a sua grande depressão percebeu-se que as razões de queixa vão muito para lá das carreiras e das colocações. No fundo têm a ver com a forma como a escola se tem vindo a degradar nos últimos tempos – longos tempos –, mesmo que por vezes existam respostas equívocas sobre o porquê dessa degradação. Um degradação que, naturalmente, também passa pela desvalorização da classe docente, a quem se pede mais depressa que cumpra funções burocráticas e domine “40 plataformas digitais para trabalhar e lançar redundantemente os mesmos dados” do que se foque nos seus alunos, professores para quem nunca se encontrou uma forma decente de assegurar que não andam com a casa às costas nem fiquam para sempre barrados nas suas carreiras. |
Teria imenso que dizer sobre cada um destes assuntos, preferiria tentar perceber como a escola pública chegou ao estado a que chegou como faz hoje a Helena Matos, mas destaquei aquele post de um professor por ele tocar na forma como este ministro – que na prática já é ministro há sete anos, pois ele é que mandava nas políticas do Ministério – tem destruído todo o sistema de avaliação (algo que denunciei na primeira hora) para conseguir um “sucesso” fictício de que depois se orgulha o primeiro-ministro. Cabe no entanto perguntar, como faz o tal professor, que “futuro terão os nossos alunos e Portugal, estando todos nós sujeitos a uma impiedosa concorrência internacional, competindo com países onde existe rigor, impera a exigência e vigora a verdade avaliativa”. |
Como esta pergunta não tem resposta possível, como o protesto ganhou mesmo dimensões únicas e atípicas, o nosso governo passou a táticas mais agressivas, no limite autoritárias, como aquelas a que assistimos na última semana e que levou – pelos testemunhos este sábado ouvidos a muitos manifestantes – a que até engrossasse o desfile avenida abaixo. |
A greve não segue a rotina preferida pelos sindicatos tradicionais? Vamos lá então ver se a greve é ilegal, tentando encontrar formas de limitar o direito à greve como já aconteceu durante o protesto dos enfermeiros (é curioso que, no Reino Unido, o governo conservador também esteja a tentar limitar o direito à greve para conter um protesto de enfermeiros). Há fundos de greve, ou suspeitas de fundos de greve? Suspeita-se também da sua legalidade. Circula um abaixo-assinado de pais de solidariedade com os professores? Lá aparece a inevitável CONFAP a tomar o partido do governo. |
Assim, neste registo persecutório, não se irá longe – ir-se-á tão longe como foi Maria de Lurdes Rodrigues em 2008, quando viu desfilar a mulher de António Costa na famosa manifestação de professores. Entretanto, ao que sei, ela já se aposentou pelo que imagino que o nosso primeiro-ministro não lhe possa pedir opinião sobre o que está a acontecer nas escolas deste país. Aliás não sei se mesmo se ela estivesse no activo lhe perguntaria alguma coisa, porque o seu hábito não parece ser o de perguntar para se informar – perguntas, perguntas, só aquela ridícula lista de 36 questões de inventou para fingir que tem “um mecanismo” que evite escândalo atrás de escândalo no seu governo (foi este o tema do meu Contra-corrente esta sexta-feira, e recomendo que oiçam o que nele disse um antigo colaborador de António Costa, o ex-secretário de Estado da Presidência Miguel Prata Roque). |
Se querem que vos diga nunca vi que António Costa tivesse paciência para o detalhe dos problemas ou para estudar a sério dossiers, no fundo para entender as políticas – no sentido nobre do termo – do seu próprio Governo. Se assim não fosse talvez tivesse percebido que era João Costa quem mandava realmente no Ministério da Educação (Tiago Brandão Rodrigues sempre foi um ministro mais decorativo) e talvez já não igorasse para onde nos leva a ideologia do seu grotesco eduquês. Mas se assim não fosse também não teria esperado tanto para substituir Marta Temido e não se atrevesse a dizer que “fundamental num Governo é a estabilidade das políticas” aquando da última remodelação porque só na área da Saúde já vai em três orientações políticas diferentes – basta pensar que o novo ministro agora até estuda agora o recurso ao sector privado e social para mitigar, na área da Lisboa, a falta de médicos de família, uma política que certamente colocaria a anterior ministra à beira de um ataque de nervos. |
Enfim, lá temos o “mecanismo”, com muitos quadradinhos para responder “sim” ou “não”, mas não temos o mais importante: um governo e um primeiro-ministro que, olhando para o mal-estar de que a manifestação de sábado foi um bom indicador, seja capaz de pensar não apenas em “controle de danos”, em “spin” ou num qualquer “passa-culpas”, áreas onde tem credenciais, para pensar um pouco mais no país e no seu futuro. É que não é só nos indicadores económicos que estamos a ficar mais perto da cauda da Europa, é também no nosso capital humano, pois os melhores emigram e emigram de novo cada vez mais. |
Debates dos nossos dias |
|
Sempre gostei, nesta newsletter, de recomendar leituras que acrescentem valor a debates contemporâneos. Para esta semana seleccionei mais algumas, sobre temas muito diferentes, mas sempre textos que fazem pensar: |
- When does life begin? The question at the heart of America’s abortion debate is the most elemental — and the most complicated. é um longo ensaio/inquérito publicado no New York Times que, partindo da actualidade do debate nos Estados Unidos sobre a interrupção voluntária da gravidez, regressa ao tema difícil de saber quando é que a vida começa, ou mais exactamente quando é que começa a vida humana. Como alguém que estudou Biologia, nunca consegui deixar de considerar que tudo começa no momento da fecundação, mas desde que, por altura dos referendos em Portugal, defendi o “sim” à despenalização andei precisamente em torno tema da diferença entre “vida” e “vida humana”. Gostei de ver por isso esse assunto tratado com delicadeza neste artigo onde se reconhece que “The search for answers pushes past science. It is tied to a society’s values, a person’s sense of self and a cultural understanding of what it means to be human. Spiritual thinkers and philosophers, who have long explored these realms, say it requires social choice, and an interrogation of our ethics.”
- Nouriel Roubini, o homem que previu o colapso financeiro de 2008 – e ninguém quis saber das suas previsões – volta a falar-nos dos perigos do futuro em Mega-Ameaças, um livro que ainda não conheço mas que acaba de ser publicado um pouco por todo o mundo. Nele fala de “10 perigosas tendências que ameaçam o nosso futuro e como sobreviver a elas” e por isso o Edgar Caetano conversou com ele e depois escreveu este especial do Observador: “Portugal está a progredir, mas demasiado devagar”, diz Nouriel Roubini, o economista que previu a crise de 2008. São muitos os avisos que o “doutor catástrofe” aí deixa, sendo que em Portugal nunca devemos esquecer o tema da dívida – as que já temos e as que estamos a criar para as gerações futuras. É que “Até recentemente, embora os rácios de endividamento fossem elevados, os custos de servir essa dívida [os juros] eram muito baixos, porque as taxas de juro eram muito baixas ou abaixo de zero, (…) mas essa festa acabou”. Outra conversa interessante (e complementar) com Nouriel Roubini foi a publicada no espanhol El Mundo, Las 10 ‘megamenazas’ del Doctor Catástrofe: “Es posible que la Tercera Guerra Mundial ya haya empezado”.
- A guerra da Ucrânia continua a preocupar-nos e por isso chamo a atenção para dois textos que me pareceram relevantes. O primeiro, Time is not on Ukraine’s side, foi escrito por Condoleezza Rice e Robert M. Gates, dois antigos responsáveis da administração George W. Bush e vozes (ainda) importantes do Partido Republicano, e saiu no Washington Post. É um texto onde se sublinha a importância do apoio a Kiev enviando material de combate. Já The benefits of Russia’s coming disintegration foi publicado no Politico por Janusz Bugajski, um senior fellow da Jamestown Foundation e nele volta-se a argumentar, de forma sustentada, que a Federação Russa, que ainda é de certa forma um império com muitas minorias, corre reais riscos de implosão.
|
Há muitos livros sobre Auschwitz, mas este é especial |
|
Não faço ideia quantos livros sairão todos os anos (todos meses?) sobre o Holocausto e sobre Auschwitz. Muitos, entre investigações originais e histórias ficcionadas. Já li alguns, continuo a achar que um dos grandes livros do século XX é Se Isto é um Homem, de Primo Levi, não me esqueço da entrevista que em tempos fiz ao autor de Sonderkommando, Shlomo Venezia, e de como o simples facto de ter sobrevivido pode ter implicado carregar uma espécie de dolorosa culpa para o resto da vida. Mas quando ouvi falar de Rudolf Vrba e da sua história, agora muito bem contada por Jonathan Freedland em O Mestre da Fuga – O homem que fugiu de Auschwitz para avisar o mundo, não pude deixar de ter vontade de ler mais um livro sobre esse lugar central da história de Humanidade (não me fico só pela história do século XX). |
Ouvi falar desta obra em dois podcast da série inglesa que tem o mesmo nome de um dos melhores podcast do Observador (E o Resto é História), mas que por sinal foi lançado há menos tempo. Esses podcast são The Man Who Escaped Auschwitz e The Shadow of the Holocaust e neles os autores conversam com Jonathan Freedland sobre um livro que talvez tenha começado a nascer há muitos anos, quando o autor tinha os mesmos 19 anos que o protagonista desta verdadeira epopeia e assistiu a um documentário famoso, Shoah, de Claude Lanzmann (são mais de 9 horas mas está disponível na íntegra, com subtítulos em inglês, no YouTube). E digo que começou a nascer nessa altura porque Rudolf Vrba era um dos entrevistados e Freedland nunca esqueceu a história de um quase adolescente que conseguiu o que praticamente mais ninguém conseguiu – fugir de Birkenau, o campo II de Auschwitz, e sobreviver com um fito em mente: contar o que se estava a passar no campo de extermínio para que os judeus, os que ainda restavam em liberdade, sobretudo na Hungria, não continuassem a embarcar sem se revoltarem nos comboios que os levavam directos para as câmaras de gás, iludidos com a promessa de que estavam apenas a ir ocupar novas terras. Não vou contar mais sobre a história reconstituída neste livro, só vos digo que será sempre uma excelente leitura agora que se aproxima mais um Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, sempre celebrado a 27 de Janeiro, aniversário da libertação do maior dos campos de extermínio. |
Na Galiza, como se ainda fosse Portugal |
Esta semana, a propósito da contratação de um treinador espanhol para a seleção nacional, Roberto Martinez, fiz um Contra-corrente dedicado às nossas relações seculares com “nuestros hermanos” – De Espanha nem bom vento nem bom casamento? Já foi – em que se falou de muita coisa, das dores de Olivença até às afinidades com a Galiza. A esse propósito um ouvinte recordou a proximidade entre Chaves e Verin e depois eu recordei que o monumento que domina Verin, o castelo de Monte Rei, até foi construído por D. Afonso Henriques mas acabou por nunca integrar o reino de Portugal. Esta conversa fez-me também um dos Caminhos de Santiago que fiz e que começou precisamente em Verin pelo que, ao rever as fotografias dessa jornada, encontrei imagem a que mostro abaixo, tirada na minúscula povoação de Arcucelos mas que bem poderia ter sido tirada ainda do lado de cá da fronteira, tão próximo é o ambiente do de muitas das nossas aldeias. Nesse dia, de resto, a etapa terminou em Laza, onde num pequeno restaurante estava pendurada a segunda imagem, um momento das festividades tradicionais do “Entroido”, no fundo o Carnaval, ou Entrudo, galego. Ao pesquisar descobri que essas festas já estão a começar e que, sendo muito antigas, não só lembram outras bem portuguesas (caso dos Caretos de Podence), como têm a particularidade de ter resistido ao franquismo, o que só terá sucedido na Galiza. |
|
Este ano, por aquelas paragens ou por outras, espero voltar de novo ao “camiño”. (Em cima, Arcucelos, em baixo uma imagem antiga do “Entroido” de Laza, com as suas máscaras tradicionais.) |
Post-Scriptum. Pacheco Pereira regressou às suas teorias conspiratórias sobre o Observador, uma velha obsessão que agora voltou em versão sonhos húmidos. É um tema sobre o qual nada tenho a acrescentar ao que escrevi, em 2021, em Um problema que Pacheco Pereira tem com ele mesmo – estive a reler e está lá tudo. |
Gostou desta newsletter? Quer sugerir alguma alteração? Escreva-me para jmf@observador.pt ou siga-me no Facebook, Twitter (@JMF1957) e Instagram (jmf1957). |
Pode subscrever a newsletter “Macroscópio” aqui. E, para garantir que não perde nenhuma, pode assinar já o Observador aqui. |
José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |
|