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Há quem ache que a democracia e as liberdades são coisas alheias aos russos e não lhes fazem falta, pelo que grandes estadistas serão os que “compreenderem” e apaziguarem Putin. Para eles a Ucrânia nem existe. |
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No final de Agosto de 2005, há quase 18 anos portanto, estive em Varsóvia e Gdansk para o 25º aniversário do Solidariedade. Lembrei-me disso esta semana quando, ao entrevistar Timothy Garton Ash, ele recordou o momento dessa celebração como aquele “em que tudo parecia estar a correr bem”. Pelo menos parecia estar a correr bem porque agora, que revisitei o que escrevi nessa altura, recordei que já nessa altura havia quem mostrasse alguma inquietação. Refiro-me a Zbigniew Brzezinski que, ao comentar as solitárias ausências nas cerimónias de Gdansk da Rússia e da Bielorrúsia, notou que “a ausência desses dois países é um sinal de que há mudanças que vêm a caminho”. |
Mas Timothy Garton Ash, como me disse na conversa que tivemos no Hotel Palácio do Estoril, à margem de mais um Estoril Political Forum, acha hoje que, depois dos avanços da democracia e da liberdade na Europa Ocidental (Portugal, Espanha, Grécia) e na Oriental (o desmoronar do Muro de Berlim), nos tornámos “arrogantes, complacentes, preguiçosos e auto-satisfeitos, e caímos na falácia da extrapolação ao acharmos que a direção na qual a história tinha ido era a direção na qual continuaria a ir. E foi precisamente nesse momento que a história começou a ir por outro caminho.” O nosso pecado, acrescenta, foi termos achado que a liberdade era inevitável e que não tínhamos de estar sempre a lutar por ela (vale muito a pena ler toda a entrevista aqui). |
Ora acontece que é provavelmente por, aos 68 anos, continuar a achar que vale a pena lutar pela liberdade que este historiador de Oxford é colocado por Miguel Sousa Tavares (MST), juntamente com Fukuyama e Bernard-Henri Lévy, entre os intelectuais “de pensamento único” que não desistem de querer uma derrota da Rússia, na perspectiva do colunista um mal maior nos dias que correm. |
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Pois é: nenhum deles desiste de desejar que a aventura militar russa na Ucrânia termine com uma derrota clara, e eu também não desisto de desejar o mesmo. Até porque não acho, como MST, que “a História é uma lavandaria onde todos entram sujos e só sai limpo o último a fechar a porta” – se achasse colocava Churchill no mesmo patamar de Hitler ou mesmo de Estaline. Assim como não posso considerar, como MST, que, para Putin, a Ucrânia tenha sido “um acidente de percurso, que ele, forçado ou não, avaliou mal”. Até porque também não aceito, como MST, o axioma de que “Putin sabe que a democracia e as liberdades, tal como as conhecemos no Ocidente, são coisas alheias aos russos: não lhes fazem falta”. Ou então que os “métodos desagradáveis” (MST classifica-os assim) que Putin usa para se livrar dos seus adversários são quase compreensíveis porque “a barbárie dos russos e dos eslavos, em geral, é lendária”. |
A lógica de Miguel Sousa Tavares é simples, mas aterradora – e é também tão antiga como a de todos os que se dedicam a “compreender” ditadores e a “explicar” autocracias. Como sempre sucede neste tipo de raciocínios lineares, a ignorância é parceira da arrogância e tudo tem explicações simples. Eis, por exemplo, como MST explica a relação de Putin com os oligarcas: “o que ele fez, no essencial, foi pôr fim ao saque das empresas estatais e estratégicas russas, que Ieltsin tinha entregue a estrangeiros a preços de saldo, e recuperou-as para a esfera do governo. A diferença entre os seus oligarcas e os do seu antecessor é que os seus passaram a ser controlados a partir do Kremlin e não do Texas”. |
De facto neste mundo onde tudo tem uma explicação fácil se acreditarmos na irremediável maldade do “grande Satã”, os Estados Unidos naturalmente, faz sentido continuar, como MST continua, nostálgico do mundo da Guerra Fria, esse tempo em que éramos governados por “uma sábia geração de dirigentes ocidentais de outro calibre” (fica sempre bem defender que “antes é que era bom”). |
Já no mundo onde nem tudo tem essa explicação militante, no mundo onde não apenas se estuda a história do passado como se escreve sobre a história do presente (é muito sobre isso o mais recente livro de Timothy Garton Ash, Pátrias – Uma História Pessoal da Europa, sendo que já escrevi sobre ele em anterior Macroscópio), nesse mundo não podemos ignorar aquilo que as pessoas desejam, aquilo a que têm direito, e não podemos achar que tudo tem explicação na tradição e nos costumes. Até porque o povo — sim, o povo, vejam lá… — insiste em querer um melhor futuro, como sucedeu na Polónia naquele Agosto de 1980 em que nasceu o Solidariedade (a luta foi longa, a democracia só chegou em 1989), e a luta pode ter avanços e recuos. Nessa cerimónia de 2005 também estavam os representantes de duas revoluções então recentes – Mikhail Saakashvili pela Geórgia da “revolução rosa”, e Viktor Iuschenko, o líder da “revolução laranja” na Ucrânia – e sabemos que o que aconteceu depois nesses dois países. Sendo que nesse dia também se lembrou a importância de que, para que as coisas aconteçam, exista quem não se conforme, como João Paulo II: “Disseram-nos ‘não tenhais medo’ – recordou em Gdansk Boris Tadić, presidente da Sérvia pós-Milosevic – e nós respondemos vencendo o medo”. |
Não é fácil, nunca é fácil, porque é sempre mais fácil “explicar” as vantagens de tudo ficar como está. Por isso regresso a Timothy Garton Ash e a uma frase sua que me ficou nos ouvidos: “Para mim, a palavra do ano é uma palavra ucraniana: “Volya”. Significa simultaneamente liberdade e força de vontade. É a vontade de ser livre, a luta pela liberdade. Foi isso que esquecemos”. |
Eu acrescentaria: é isso que não podemos voltar a esquecer, até porque eles andam por aí. |
PS. O general Agostinho Costa, presença habitual dos estúdios da CNN, não tem a patine de Miguel Sousa Tavares, pelo que disfarça muito mal o seu filo-sovietismo. Felizmente o coronel José Rodrigues do Carmo deu-se ao trabalho de elencar alguns dos seus mais notórios dislates em O General no seu labirinto. Recomendo a leitura. |
O poder de Putin depois da revolta do grupo Wagner |
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O inimaginável aconteceu no passado fim-de-semana quando Yevgeny Prigozhin e o seu grupo Wagner ocuparam o quartel-general dos tropas russas em Rostov e depois iniciaram uma marcha em direcção a Moscovo que só terminou quando já estavam a apenas 200 quilómetros da capital. Muito se escreveu sobre as circunstâncias dessa revolta (e até se debateu até que ponto se tratou de um golpe de Estado falhado), designadamente em alguns especiais do Observador que relembro: |
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Gostaria no entanto de recomendar mais algumas leituras que considero especialmente interessantes, ou originais, ou pertinentes, ou tudo isso ao mesmo tempo. |
Começo por um texto do historiador Timothy Snyder, publicado no seu blogue Thinking about…, Prigozhin’s March on Moscow – Ten lessons from a mutiny. Extraordinariamente bem informado, deste texto destaco esta interessante leitura da forma de agir de Vladimir Putin: When backed into a corner, Putin saves himself – So long as Putin is in power, this is what he will do. He will threaten and hope that those threats will change the behaviour of his enemies. When that fails, he will change the story. His regime rests on propaganda, and in the end the spectacle generated by the military is there to serve the propaganda. Even when that spectacle is as humiliating as can be possibly be imagined, as it was on Saturday when Russian rebels marched on Moscow and Putin fled, his response will be to try to change the subject. |
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Outro autor que vale sempre muito a pena ler é Mark Galeotti, também historiador e cientista político e que escreve regularmente na Spectator, para além de ter um podcast, In Moscow’s Shadows, que sigo religiosamente. O seu texto After Putin: how nervous should we be? fez mesmo a mais recente capa da revista e é bem interessante. Pequena passagem, onde explica aquilo que une os que fazem parte do círculo de Putin: “The septuagenarian Putin has surrounded himself with a clique of individuals with very similar backgrounds. Almost all are also in their seventies, veterans of the KGB, and also arrivistes, the first in their families to break into the nomenklatura, the Communist party chosen. They had finally made it, just in time for that system to collapse around them. A sense of loss has metastasised into one of betrayal, of anger towards a West that supposedly brought down the USSR, then neglected and exploited Russia in the 1990s and has tried to stymie its resurgence since. There is an emotional dimension to Russian policy too often neglected in debates over geostrategic interests.” Recomendo também o texto que escreveu para a The Economist, Vladimir Putin’s self-inflicted wounds. |
No que respeita a textos de análise mais jornalísticos destaco, pela sua profundidade e abrangência, What’s Next for Russia – Putin’s Regime Faces Its Own Show of Weakness, editado pelo Wall Street Journal. |
Apesar das dificuldades russas, a guerra continua |
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Não me quero alongar muito hoje sobre o que se passa na frente de batalha, mesmo sendo certo que será aí que tudo se decidirá. E aí muito dependerá do que suceder nas próximas semanas com a contraofensiva ucraniana actualmente em curso. O que se está a passar no sul e leste da Ucrânia não deve ser bonito de ver, e para se ter uma ideia do dispositivo que os russos montaram e que os ucranianos estão agora a enfrentar recomendo que olhem para este trabalho do New York Times, 21 Miles of Obstacles – The Ukrainian counteroffensive faces an enemy nearly as daunting as the Russians: the terrain. Obstáculo a obstáculo, trincheira a trincheira, tudo pode ser visto de forma esquemática neste artigo muito, mas mesmo muito revelador sobre o tipo de dificuldades que os ucranianos estão a enfrentar num terreno particularmente difícil. |
Livros a propósito de uma incursão contemporânea ao “miguelismo” |
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A passagem do 200º aniversário do levantamento do D. Miguel contra as Cortes liberais (24 de Maio de 1823) já levara o Rui Ramos e o João Miguel Tavares a irem até Vila Franca de Xira para gravarem mais uma edição do podcast E o Resto é História, em concreto o programa Os 200 anos da Vilafrancada. Contudo, por sugestão de alguns ouvintes, acabei por aproveitar este aniversário redondo para, num Contra-corrente, interrogar-me sobre se 200 anos depois, a direita ainda será miguelista. Mas como julgo ter sucedido com muitos da minha geração, o século XIX português era aquela parte da matéria a que nunca se chegava, pelo que aquilo que vou sabendo desse período resulta exclusivamente do que vou lendo, sendo que felizmente Portugal teve excelentes historiadores interessados pela história do liberalismo português, um deles o próprio Rui Ramos, autor do volume correspondente (o VI) na História de Portugal dirigida por José Mattoso. |
Para preparar o meu programa deitei mão de duas obras mais recentes, ambas de autores de referência para esse período. A primeira foi A Republicanização da Monarquia, perceber o Século XIX português, de Maria de Fátima Bonifácio, um livro onde se lembra como, depois da derrota do miguelismo, o mundo conservador, aristocrático e rural, foi silenciado, só voltando a reaparecer em Portugal com expressão política na primeira metade do século XX. |
Já O Fundo da Gaveta, o último livro publicado em vida por Vasco Pulido Valente, reúne dois ensaios a que o autor tinha perdido o rasto (felizmente Rui Ramos tinha guardado duas cópias dos originais…), sendo um deles, A Contra-Revolução, precisamente sobre a forma como D. Miguel falhou a tentativa de restaurar o absolutismo. |
É sempre um prazer aprender, e fazê-lo pela mão de quem para mais escreve muito bem é um prazer ainda maior. |
Regresso ao Piódão |
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Estive a tentar lembrar-me de quando fui pela primeira vez ao Piódão e julgo não me enganar muito se disser que foi no início da década de 1980, numa altura em que andava por aí a ver as estradas em que o Rali de Portugal se poderia voltar a decidir. A classificativa de Arganil era mítica, mais de 40 quilómetros de piso de terra serpenteando pelo alto da serra do Açor, muitas vezes à beira de precipícios. Para o mito muito contribuíra uma inacreditável e lendária prestação, no rali de 1980, do piloto alemão Walter Rohrl, que com a serra mergulhada no nevoeiro e sem conseguir ver a estrada, conduziu “às cegas” e acabou por ganhar aí uma vantagem de mais de quatro minutos para o seu principal adversário, o finlandês Markku Alen. Foi nessas voltas que visitei pela primeira vez aquela aldeia pousada num refego da montanha, as suas casas em escadaria como que abraçando a pequena igreja branca que, em vez de destoar, pontua e dá dimensão ao lugar. Voltei lá vezes suficientes para poder dedicar-lhe algumas linhas em Serras de Portugal, um dos livros que escrevi com Maurício Abreu. |
Foi por isso com curiosidade que regressei ao Piódão no passado mês de Junho e que de lá fiz base para, percorrendo a pé escorregadios trilhos de montanha, descer até outra aldeia hoje também muito celebrada, Foz d’Égua. Se há 40 anos por ali andei por causa das corridas de automóveis, desta vez descobri o que só se descobre seguindo por caminhos de pé posto. São dessa minha volta as imagens que vos deixo, entre elas uma do curioso interior da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, que antes nunca conseguira visitar por estar sempre fechada. |
Tenham um bom domingo. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |