Dia 22 de março de 2017, uma data que está gravada na consciência coletiva portuguesa. Foi o dia em que Jeroen Dijsselbloem, então presidente do Eurogrupo, fez a sua infame declaração em que insinuava que os países do sul da Zona Euro gastavam o seu dinheiro em copos e mulheres. Um acontecimento que caiu como uma bomba nestes países, mas que nos Países Baixos teve pouco impacto e provavelmente até encontrava apoio entre uma parcela significativa da população.

2017 também foi o ano da minha chegada a Portugal, após um ano sabático no Brasil, em que fiz um curso de português que fez-me avançar de nível A1 até ao nível C2 em quatro meses. Ingressei no mestrado em Ciência Política do ISCTE-IUL. Logo nos primeiros dias de aula, um colega, quando se deu conta de que eu era holandês, perguntou-me se eu conhecia Jeroen Dijsselbloem. A pergunta deixou-me sem graça. Distanciei-me enfaticamente da pessoa Dijsselbloem e da declaração.

Trago este tema porque fui lembrado do mesmo pelo crescimento dos incidentes xenófobos dos últimos anos contra os provenientes de um planeta distante mas com um tamanho de tal magnitude que faz sentir a sua força gravitacional em Portugal.

Estou a falar do Brasil.

Tal como os Países Baixos estão inseridos numa rede de dependência mútua com Portugal e outros países da UE (nenhum país do tamanho da Holanda ou de Portugal conseguiria se manter em pé sozinho no mundo em que vivemos), a mesma coisa vale pela relação entre Portugal e o Brasil. Porém, neste último caso, a dependência é mais de Portugal do Brasil do que vice versa, e tem sido assim há muitos séculos. Ainda depois da independência do Brasil, o país acolheu um milhão e meio de imigrantes portugueses, muitas vezes pessoas pobres e marginalizadas a procura de uma vida melhor. Fê-lo sem reclamar, sem assediar um único português por causa da sua origem. E não é de todo inconcebível que os portugueses vão precisar outra vez da hospitalidade brasileira. Ainda durante a crise da Zona Euro, muitos portugueses emigraram para o Brasil. E hoje, com a Rússia a bater nas portas da Europa e a possibilidade cada vez mais real de guerra generalizada, os portugueses podem considerar-se privilegiados com a existência de um refúgio gigante, longe da linha da frente, em que se fala a mesma língua e que tem um acordo bilateral de migração com Portugal.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Casos de xenofobia contra brasileiros podem ter pouco impacto em Portugal, mas nada é menos verdade no Brasil. Tal como os portugueses ficaram enfurecidos pela declaração do Dijsselbloem, os brasileiros levaram ofensa com os ditos incidentes xenófobos. Ainda no dia 7 de novembro de 2023, Flávio Dino, Ministro da Justiça do Brasil, reagiu a um caso em que uma mulher portuguesa assediou uma brasileira no aeroporto de Lisboa, a dizer-lhe para voltar a terra dela, e a insinuar que os brasileiros estivessem a invadir Portugal. O Brasil aceitaria a repatriação dos seus cidadãos se Portugal lhe devolvesse o ouro, rebateu-lhe o Dino. Da mesma forma que os incidentes Dijsselbloem e Hoekstra — Ministro das Finanças holandês que se posicionou contra um fundo de solidariedade europeu no auge da pandemia, alegando “risco moral” — foram desastrosos para a reputação dos Países Baixos na União Europeia, os casos de xenofobia contra brasileiros em Portugal, cada vez mais visíveis por conta da viralização nas redes sociais, custam caro à reputação portuguesa no Brasil.

O acontecimento no aeroporto de Lisboa segue uma série de incidentes ao longo dos últimos anos. Um artigo publicado nestas páginas em dezembro do ano passado citou dados da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial que relatam um aumento de 505% de denúncias de xenofobia contra imigrantes brasileiros em anos recentes. Alguns dos casos mais prominentes foram causados por indivíduos, como o caso da caixa de pedras montada na entrada da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 2019, com uma nota que dizia que as pedras eram “souvenirs”, grátis se fosse para atira-las a algum “zuca (que passou à frente no mestrado)”, e o caso da agressão física contra uma aluna e jornalista brasileira na Universidade do Minho em novembro do ano passado.

Outros incidentes foram provocados por instituições, como o caso da Ordem dos Advogados de Portugal que, sem aviso nem motivo, unilateralmente abrogou o acordo bilateral que tinha com a Ordem dos Advogados do Brasil, e que permitia que advogados de cada um dos dois países atuassem no outro. Além disto, o Carnaval brasileiro em Lisboa deste ano, sobre qual já foi escrito nestas páginas, foi impossibilitado pela PSP e a CML através da introdução de taxas elevadas que estrangularam os blocos. A cultura brasileira é consumida com força em Portugal, tanto que nos carnavais de Sesimbra e Torres Vedras, ouve-se principalmente música brasileira, mas é oprimida quando são os próprios brasileiros que a expressam.

Hoje, Portugal é um país em estagnação com crescimento negativo da sua população, apesar ainda da imigração. Um terço dos jovens entre os 15 e 39 anos nascidos em Portugal já emigraram. Há um brain drain de uma magnitude preocupante. Se Portugal quiser sobreviver como país, vai precisar de muito mais imigração, não só para atender à necessidade de mão de obra, mas também para atrair trabalhadores altamente qualificados, e para manter a população num nível sustentável. Neste aspeto, o André Ventura é como um jovem que mora com os pais mas que fala mal deles, achando-se completamente independente enquanto não percebe que vive aos custos dos mesmos.  A hipocrisia portuguesa, em relação tanto aos imigrantes brasileiros quanto aos imigrantes de forma geral, tem de acabar, antes que se torne fatal.