“Nos países liberais, os trabalhadores ganham mais!” “Fazer o que já foi feito em países liberais!” Toda a gente já deve ter visto os cartazes da Iniciativa Liberal com estes lemas. Mas curiosamente o partido nunca fornece uma definição do que seria um “país liberal”.

O liberalismo é uma filosofia política fundada pelo filósofo John Locke no século XVII, e é geralmente associada a valores como os direitos individuais, as liberdades cívicas e a liberdade económica. Porém, a Iniciativa Liberal vai além do chamado liberalismo clássico e se encaixa mais especificamente numa corrente dentro do liberalismo, conhecido como libertarianismo ou anarcocapitalismo, que é uma espécie de absolutismo do livre mercado. Aqui, o Estado é visto como a origem de todos os males, e o mercado como a salvação da humanidade.

Com estas ideias estabelecidas, podemos levantar uma questão: pode um país ser “liberal”? Isto é, pode um país inteiro ser definido em termos de uma única corrente política? E qual será a operacionalização deste conceito? Vou tentar responder a estas perguntas com base em um país que eu conheço particularmente bem por ser o meu país de origem e que é a principal estrela do discurso da Iniciativa Liberal: os Países Baixos. Há algumas formas de operacionalizar empiricamente o conceito liberalismo. Podemos olhar para as identidades dos partidos políticos que regeram uma nação durante a maior parte do tempo, ou podemos olhar para as políticas económicas e sociais existentes naquela nação.

Começarei com o primeiro método. Desde as eleições de 1989, quando o sistema partidário começou a assemelhar-se à sua forma contemporânea, o VVD (Partido Popular pela Liberdade e a Democracia), um partido fundado em 1948 e com uma identidade liberal “clássica” assumida, sendo menos radical que a IL, participou em nove do total de onze governos constituídos. Só ficou na oposição de 1989 a 1994 e de 2006 a 2010. Em quatro dos governos em que participou, o primeiro ministro era deste partido (Mark Rutte). Porém, num sistema partidário altamente fragmentado como o holandês, nenhum partido nunca governa sozinho, e o VVD governou sempre com um ou mais dos seguintes partidos: os cristãos-democratas do CDA, os sociais-democratas do PvdA, os sociais-liberais do D66, os cristãos-sociais do CU e a direita radical do LPF e do PVV. Ou seja, enquanto a maioria dos governos formados desde 1989 tiveram um componente liberal clássico, este componente nunca foi exclusivo, foi representado na figura do primeiro ministro pouco mais que um terço do tempo e teve que dividir o palco com partidos do espetro político todo, de sociais-democratas a direitistas radicais. Reduzir esta diversidade toda para “governos liberais” claramente não faz justiça à realidade.

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Seguirei agora para a questão das políticas públicas. Os Países Baixos do século XIX e da primeira metade do século XX eram caracterizados por um Estado mínimo. Porém, os Países Baixos do pós-guerra ganharam a reputação de terem um forte Estado de bem-estar social.

É verdade que os Países Baixos têm algumas políticas claramente na linha da IL. Em primeiro lugar, o país tem uma taxa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) de 25%, a qual é considerada relativamente baixa. Porém, em Portugal a IRC é de apenas 21%. Não obstante, o sistema tributário holandês tem uma série de isenções e brechas que, desde os anos 1970, deram-lhe a fama de ser um paraíso fiscal para empresas estrangeiras. Principalmente os acordos bilaterais que as Finanças holandesas fazem com as empresas são polémicas nos planos internacional e doméstico. Por outro lado, a taxa de IRS é de 49%, apenas 4 pontos percentuais menos que a portuguesa, mas ainda entre os líderes da Europa na tributação de renda.

Em termos de políticas substantivas, realço três áreas importantes: saúde, educação e habitação. Enquanto em Portugal existe uma dicotomia nas áreas da educação e da saúde entre sistemas públicos, usados pela maioria da população, e sistemas privados, usados por uma minoria que consegue os pagar, nos Países Baixos existe um sistema único para todos. Embora estes sistemas contem, principalmente hoje em dia, com um componente privado, os preços são determinados pelo Estado e os serviços altamente subsidiados. A educação primária e secundária são praticamente gratuitas. Para a saúde existe um seguro obrigatório cujo preço é determinado pelo Estado (o pacote básico custa € 146,- por mês), e o mesmo paga subsídios aos utentes com base na renda pessoal para ajudar a pagar o seguro, que podem chegar até aos € 123,- por mês para indivíduos e € 236,- para casais. E o custo deste seguro para o utente nem representa o preço da saúde se houvesse um mercado verdadeiramente livre: os próprios serviços de saúde também são fortemente subsidiados pelo Estado. A questão da habitação é ainda mais gritante: nos Países Baixos, a habitação social representa quase 35% do total, a proporção mais alta da OCDE. Portugal está próximo do outro extremo, com menos de 3% de habitação social. Em resumo, mesmo os serviços públicos que contam com um componente privado, dependem de níveis elevados de investimento por parte do Estado. A pergunta fica se a IL estaria disposta a ou capaz de fazer o mesmo investimento.

Para concluir, em democracia, as diferentes correntes políticas têm que governar juntas, ora em coligação, ora em intercalação. Portanto, nenhum país democrático pode ser reduzido a uma única corrente política (a mesma coisa, aliás, vale para autocracias, basta comparar a Rússia czarista com a União Soviética). Ainda por cima, países como a Holanda e outros países aos quais a IL refere, têm na maioria Estados de bem-estar sociais bastante bem desenvolvidos e investem uma parcela substancial do orçamento nos serviços públicos, algo que a IL não parece estar disposta a fazer. O que sobra do discurso da IL sobre os supostos países liberais é um belo cherry-picking, em que apenas aqueles aspetos que se encaixam na narrativa do partido são realçados enquanto os aspetos menos convenientes são ignorados. Não é apenas uma falta de respeito para com os eleitores, mas também para com os ditos países liberais, cujas histórias ricas compostas por múltiplas tradições, por vezes contraditórias, são reduzidas para uma única dimensão, como recortes de papel, para servirem o programa eleitoral da IL.