Portugal está a frente de um dilema. Um partido da direita radical tornou-se o terceiro maior partido na Assembleia da República, e uma maioria ideologicamente “coesa” é impossível sem a participação do Chega. A alternativa seria uma grande coligação que atravessasse o eixo esquerda-direita, composta pelo PSD e o PS, os tradicionais rivais num sistema que, até pouco tempo atrás, era praticamente bipartidário.

Porém, para formar um governo à direita, seria necessário, no mínimo, o apoio do Chega no Parlamento numa espécie de geringonça de direita, ou, no máximo, a participação no Chega no governo. Mas o que pode-se esperar de um governo de coligação com apoio ou participação de um partido da direita radical? Como é a governabilidade em tal tipo de governo? Respondo a estas questões com base em dois exemplos dos Países Baixos.

Em 2002, um partido da direita radical, a Lista Pim Fortuyn (LPF), disputou as eleições legislativas holandesas pela primeira vez, e saiu em terceiro lugar. Após 8 anos de governos “roxos”, compostos pelos sociais-democratas do PvdA, os liberais do VVD, e os sociais-liberais do D66, os principais partidos de direita, o cristão-democrata CDA e o VVD, optaram por formar um governo à direita com a participação plena do LPF.

A formação do governo, sempre um grande puzzle por causa do grande número de partidos e a abundância de combinações possíveis para formar uma maioria num sistema ideologicamente promíscuo, aconteceu depressa, e dois meses após as eleições, o Governo Balkenende I foi inaugurado.

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Entretanto, dificuldades surgiram rapidamente para os parceiros da coligação, e principalmente para o LPF. O líder do partido, Pim Fortuyn, havia sido assassinado menos de duas semanas antes da eleição. A perda do líder carismático criou um vácuo de poder dentro do partido e levou a uma intensa disputa interna sobre a liderança do partido, que acabou por levar abaixo o governo, 87 dias após a sua inauguração. Novas eleições foram marcadas para janeiro de 2003. Naquelas eleições, O LPF caiu de 26 para 8 assentos.

Sete anos depois, em 2010, um cenário parecido desenrolou-se. O LPF tinha sido dissolvido a nível nacional por decisão interna em 2008 e um novo partido da direita radical, o PVV, fundado em 2006 por um deputado dissidente do VVD, o Geert Wilders, alcançou o terceiro lugar nas eleições legislativas, após o VVD e o PvdA. O governo anterior, Balkenende IV, uma criação ideológica particular composta pelo cristão-democrata CDA, o social-democrata PvdA, e o cristão-social CU, havia caído após a saída do PvdA por causa de um conflito sobre o possível prolongamento da missão militar em Afeganistão.

Talvez por este motivo, os principais partidos da direita, VVD e CDA, acabaram por optar por um governo à direita. Após o fracasso de uma primeira exploração de uma cooperação entre VVD e PVV, foi feita uma tentativa de formar um novo governo “roxo”, que também fracassou. Finalmente, após o aval hesitante do CDA—dos cujos membros uma parcela significativa se opunha à cooperação com o PVV—, VVD e CDA chegaram a um acordo com o PVV, quase 5 meses após as eleições.

Numa espécie de geringonça à direita avant-la-lettre, o PVV daria apoio ao governo no parlamento em troca por concessões políticas, mas sem ingressar no governo. Mark Rutte (VVD) foi nomeado Primeiro Ministro, e realçou que era o primeiro PM liberal desde a Primeira Guerra Mundial. Entretanto, as divergências entre o PVV e as políticas do governo acabaram por ser imensas. Em algumas questões, como a renovação da missão policial em Afeganistão, e o empréstimo à Grécia no âmbito do Fundo Europeu de Estabilização Financeira, o PVV votou contra o governo. O governo apenas conseguiu aprovar estas iniciativas com o apoio de partidos da oposição. A gota d’água foi quando, em 2012, o PVV descordou de um pacote de cortes de milhares de milhões de euros proposto pelo governo no âmbito do Orçamento de Estado de 2013 e retirou o seu apoio ao governo, inviabilizando o mesmo dois anos após a sua formação.

Estes exemplos apontam a um conjunto de problemas que podem surgir num governo com participação ou apoio da direita radical. Em primeiro lugar, estes partidos tendem a ser outsiders e tendem a crescer rapidamente após as suas fundações. Este era o caso do LPF mas também é o caso do Chega. Num contexto de crescimento rápido em combinação com a responsabilidade governativa, conflitos internos podem facilmente surgir. Estes conflitos, por sua vez, podem pôr em questão a governabilidade, como foi o caso do governo Balkenende I.

Em segundo lugar, os partidos da direita radical têm propostas radicais, ou seja, ideologicamente distantes daquelas dos demais partidos, o que pode dificultar a cooperação com os parceiros de coligação, como foi o caso do Governo Rutte I.

Uma vantagem que os Países Baixos tinham é que a sua cultura política era relativamente promíscua, sendo habitual partidos de esquerda entenderem-se com partidos da direita. Portanto, evitar a direita radical sempre foi uma opção, mesmo durante um governo que contava com o apoio formal da mesma. Ao contrário, em Portugal, com o seu sistema partidário que durante muito tempo era quase bipartidário, a situação acima mencionada é pouco habitual e o único governo do “Bloco Central” foi o IX Governo Constitucional de Portugal (1983-1985).

Esta desvantagem torna o dilema português maior. Porém, diferentemente dos Países Baixos, em Portugal existe um costume de haver governos de minoria. Antes do crescimento do Chega, ao menos um dos partidos do Bloco Central sempre ficava próximo a uma maioria sozinho, e fazia sentido formar governos de minoria. Entretanto, no contexto das legislativas de 2024, cujos resultados ainda eram provisórios na hora de escrever, a opção de um governo de minoria parece menos viável. O conjunto dos partidos de esquerda está distante de uma maioria, e a mesma coisa vale para a direita tradicional.

Em resumo, nenhum dos cenários acima mencionados é ideal. Por um lado, um governo do Bloco Central teria muito pouca experiência prévia em governar juntos e seria dificultado pelo histórico de rivalidade intensa entre os dois partidos integrantes. Por outro lado, os exemplos holandeses demonstram que um governo com AD, IL e Chega, possivelmente em forma de geringonça, pode não durar muito devido ao risco duplo de conflito interno no Chega e as divergências entre o Chega e os partidos da direita tradicional, que inevitavelmente surgiriam ao longo do mandato. Porém, nos termos normativos dos valores da democracia liberal, o primeiro cenário é preferível ao segundo.