O Governo Regional da Madeira decidiu prorrogar a obrigatoriedade da dupla testagem a todos os viajantes residentes na Madeira ou no Porto Santo, estudantes, emigrantes e seus familiares que desembarquem nos aeroportos da Madeira e Porto Santo – em suma: os madeirenses e portosantenses que pretendam passar o Natal em casa e com as suas famílias ficam obrigados a repetir o teste entre 5 a 7 dias depois do primeiro resultado negativo, devendo permanecer em isolamento durante esse período.
Sem pretender discutir a (in)constitucionalidade ou (i)legalidade da medida – e certo de que mesmo em estado de emergência não são admissíveis todas e quaisquer restrições e limitações aos direitos constitucionalmente consagrados -, gostaria, porque o dever cívico assim o impõe, de deixar alguns pontos para reflexão:
- Ninguém discute a delicadeza da situação pandémica e sanitária que hoje vivemos, a sobrecarga do sistema nacional e regional de saúde, todo o esforço e investimento que tem vindo a ser feito pelos governos, autoridades e profissionais de saúde, restauração e hotelaria, entidades empregadoras, pelas escolas e enfim, por todos os cidadãos.
- E muito menos se discute a bondade das medidas que os governos têm procurado adotar.
- Ninguém discute também – princípios da adequação, proporcionalidade e igualdade à parte (mesmo que tal não me seja concebível) – os objetivos que, no caso concreto, o Governo Regional procura alcançar com a obrigatoriedade da dupla testagem.
- Discutível é, porém, a imposição (e o sucesso) da dupla testagem aos madeirenses e portosantenses (e só a esses) que aterrem na Madeira e no Porto Santo nos dias imediatamente anteriores ao dia de Natal.
- Estou certo de que existem milhares de madeirenses, que em virtude de trabalharem em Portugal Continental ou no estrangeiro, não conseguem viajar para a Madeira e para o Porto Santo com a antecedência necessária para cumprirem a obrigatoriedade da dupla testagem. Não me refiro aos estudantes que terminam as aulas presenciais no início de dezembro e têm, ainda assim, maior flexibilidade na data e hora de regressarem a casa.
- Refiro-me aos madeirenses e portosantenses que residem em Portugal Continental, nos Açores ou no estrangeiro e lá trabalham, e que não conseguem, por razões profissionais, regressar com a antecedência necessária para cumprir, antes dos dias de Natal, a dupla testagem imposta aos madeirenses e portosantenses.
- São esses mesmos madeirenses e portosantenses que, à semelhança da grande maioria dos Portugueses, convivem diariamente com as intensas medidas restritivas que têm vindo a ser impostas desde março em Portugal Continental e no resto do mundo e que têm, hoje, natural e instintivamente assimilados os comportamentos sanitários recomendados pelas autoridades de saúde, de etiqueta respiratória e preventivos na transmissão do maldito vírus.
- São esses mesmos madeirenses e portosantenses que estiveram (ou estão) confinados em teletrabalho ou com intensas restrições nas suas circulações diárias ou ao fim de semana, sempre longe das suas famílias.
- São esses mesmos madeirenses que procuram, no Natal, receber um pouco de “casa”, de amor e de força num ano que tem sido devastador para todos, em especial para aqueles que vivem ou estão longe dos seus.
- Se é verdade que o vírus não tira férias no Natal, não menos verdade é que o Natal tem um significado e um simbolismo familiar, religioso e humano diferente, que merece outras ponderações políticas e sociais, ponderações essas que o próprio Governo da República e tantos outros governos nacionais têm procurado conciliar nas medidas que decretam para o período dos dias de Natal.
- Ninguém é irresponsável ao ponto de sugerir que não seja feita qualquer tipo de testagem à Covid antes de embarcar com destino à Madeira ou ao Porto Santo, e quero acreditar que ninguém é negligente e inconsciente ao ponto de ter comportamentos de risco que possam vir a pôr em causa a saúde dos seus mais queridos.
- Concordo que o despiste da Covid seja realizado na origem, isto é, que qualquer pessoa que viaje para a Madeira ou para o Porto Santo tenha de apresentar, antes de embarcar, um teste negativo ao despiste da Covid.
- E sempre se assinale que esse teste negativo na origem foi a regra e suficiente até finais de novembro.
- Consigo tentar compreender (sem nunca concordar) que possa, eventualmente, vir a ser recomendável uma dupla testagem (com isolamento durante esse período) aos estudantes e emigrantes que desembarquem na Madeira e no Porto Santo até meados do mês de dezembro, ou no período em que há maior fluxo de entradas na Região, como forma de contenção e maior controlo dos casos.
- O que não consigo compreender (e muito menos concordar), é que nos dias imediatamente anteriores ao Natal não haja uma maior flexibilidade, sensibilidade e humanismo.
- O que não consigo compreender, é como é que o mesmo Governo que se revela ultra protecionista do vírus em relação aos madeirenses e portosantenses, não o seja em relação aos turistas continentais ou estrangeiros.
- O que não consigo compreender, é como é que o mesmo Governo que adota estas medidas para os madeirenses e portosantenses em prol da segurança dos residentes e do sistema regional de saúde, é o mesmo que se congratula pelo aumento e reforço do número de voos e ligações internacionais com a Madeira nesse mesmo período do ano.
- E sempre se diga, que muitos desses madeirenses e portosantenses são os mesmos que se veem obrigados a regressar nos dias imediatamente seguintes ao Natal, e sempre antes do final do ano, devido aos preços pornográficos praticados pela TAP e demais companhias aéreas nessa altura do ano.
- Repito, a premissa é sempre a mesma: falo da eventualidade de que essas mesmas pessoas que só conseguem viajar nos dias imediatamente anteriores ao dia de Natal, realizem e apresentem um despiste negativo à Covid antes de viajarem para a Madeira ou para o Porto Santo.
- E agora simplificando: hoje, qualquer não madeirense ou não portosantense (um Português natural dos Açores ou de Portugal Continental ou um estrangeiro) que viaje para a Madeira não tem de realizar a dupla testagem (com isolamento) imposta pelo Governo Regional aos madeirenses e portosantenses.
- De outro modo: um não madeirense ou não portosantense que desembarque na Madeira com um teste de despiste negativo à Covid não tem qualquer tipo de restrição de circulação ou limitação à sua liberdade.
- De um outro modo ainda: se A (madeirense) e B (continental, açoriano ou estrangeiro), ambos com teste de despiste à Covid de resultado negativo viajarem para a Madeira no mesmo voo, no mesmo dia: (i) A tem de realizar um novo teste entre 5 a 7 dias depois da realização do primeiro teste, cumprindo isolamento entretanto; e (ii) B pode circular à vontade, sem qualquer tipo de restrição e está dispensado de realizar um novo teste.
- Mas voltando ao cerne desta reflexão cívica: não seria razoável, humano e sensato ajustar as medidas definidas para os madeirenses e portosantenses que queiram passar o Natal (e tudo o que ele representa) na Região, em liberdade e com a sua família, e só consigam viajar, por razões estritamente profissionais, nos dias imediatamente anteriores ao Natal, desde que apresentem um teste negativo ao despiste da Covid na origem?
- Insistindo noutros pontos laterais a esta reflexão cívica: todos sabemos o quanto a economia madeirense depende do turismo, mas não se percebe como se legitima, justifica e compreende um tratamento desigual, discriminatório, desproporcional e inconstitucional dos madeirenses e portosantenses em relação a todos os demais, num período tão especial e importante como é o Natal, ainda para mais num ano como este.
- E questiona-se ainda se o próprio sistema regional de saúde está preparado para cumprir atempadamente os prazos da dupla testagem e a revelação atempada dos seus resultados para que os madeirenses e portosantenses sujeitos à dupla testagem e confinamento sejam, enfim, livres – muito embora essa liberdade possa apenas surgir no dia de regresso ao continente ou ao estrangeiro.
Talvez esta seja uma reflexão individualista e irresponsável, certamente impopular e de crítica fácil e barata – o assunto é, por si mesmo, social e politicamente bastante complexo, mas, nem o estado de emergência pode limitar a democracia e o espírito crítico; nem a situação aflitiva e pandémica que vivemos nos pode afastar de algum humanismo ou dos valores e princípios (alguns constitucionalmente consagrados) que a nossa sociedade deve continuar a preservar.