O Governo Regional da Madeira decidiu prorrogar a obrigatoriedade da dupla testagem a todos os viajantes residentes na Madeira ou no Porto Santo, estudantes, emigrantes e seus familiares que desembarquem nos aeroportos da Madeira e Porto Santo – em suma: os madeirenses e portosantenses que pretendam passar o Natal em casa e com as suas famílias ficam obrigados a repetir o teste entre 5 a 7 dias depois do primeiro resultado negativo, devendo permanecer em isolamento durante esse período.

Sem pretender discutir a (in)constitucionalidade ou (i)legalidade da medida – e certo de que mesmo em estado de emergência não são admissíveis todas e quaisquer restrições e limitações aos direitos constitucionalmente consagrados -, gostaria, porque o dever cívico assim o impõe, de deixar alguns pontos para reflexão:

  1. Ninguém discute a delicadeza da situação pandémica e sanitária que hoje vivemos, a sobrecarga do sistema nacional e regional de saúde, todo o esforço e investimento que tem vindo a ser feito pelos governos, autoridades e profissionais de saúde, restauração e hotelaria, entidades empregadoras, pelas escolas e enfim, por todos os cidadãos.
  2. E muito menos se discute a bondade das medidas que os governos têm procurado adotar.
  3. Ninguém discute também – princípios da adequação, proporcionalidade e igualdade à parte (mesmo que tal não me seja concebível) – os objetivos que, no caso concreto, o Governo Regional procura alcançar com a obrigatoriedade da dupla testagem.
  4. Discutível é, porém, a imposição (e o sucesso) da dupla testagem aos madeirenses e portosantenses (e só a esses) que aterrem na Madeira e no Porto Santo nos dias imediatamente anteriores ao dia de Natal.
  5. Estou certo de que existem milhares de madeirenses, que em virtude de trabalharem em Portugal Continental ou no estrangeiro, não conseguem viajar para a Madeira e para o Porto Santo com a antecedência necessária para cumprirem a obrigatoriedade da dupla testagem. Não me refiro aos estudantes que terminam as aulas presenciais no início de dezembro e têm, ainda assim, maior flexibilidade na data e hora de regressarem a casa.
  6. Refiro-me aos madeirenses e portosantenses que residem em Portugal Continental, nos Açores ou no estrangeiro e lá trabalham, e que não conseguem, por razões profissionais, regressar com a antecedência necessária para cumprir, antes dos dias de Natal, a dupla testagem imposta aos madeirenses e portosantenses.
  7. São esses mesmos madeirenses e portosantenses que, à semelhança da grande maioria dos Portugueses, convivem diariamente com as intensas medidas restritivas que têm vindo a ser impostas desde março em Portugal Continental e no resto do mundo e que têm, hoje, natural e instintivamente assimilados os comportamentos sanitários recomendados pelas autoridades de saúde, de etiqueta respiratória e preventivos na transmissão do maldito vírus.
  8. São esses mesmos madeirenses e portosantenses que estiveram (ou estão) confinados em teletrabalho ou com intensas restrições nas suas circulações diárias ou ao fim de semana, sempre longe das suas famílias.
  9. São esses mesmos madeirenses que procuram, no Natal, receber um pouco de “casa”, de amor e de força num ano que tem sido devastador para todos, em especial para aqueles que vivem ou estão longe dos seus.
  10. Se é verdade que o vírus não tira férias no Natal, não menos verdade é que o Natal tem um significado e um simbolismo familiar, religioso e humano diferente, que merece outras ponderações políticas e sociais, ponderações essas que o próprio Governo da República e tantos outros governos nacionais têm procurado conciliar nas medidas que decretam para o período dos dias de Natal.
  11. Ninguém é irresponsável ao ponto de sugerir que não seja feita qualquer tipo de testagem à Covid antes de embarcar com destino à Madeira ou ao Porto Santo, e quero acreditar que ninguém é negligente e inconsciente ao ponto de ter comportamentos de risco que possam vir a pôr em causa a saúde dos seus mais queridos.
  12. Concordo que o despiste da Covid seja realizado na origem, isto é, que qualquer pessoa que viaje para a Madeira ou para o Porto Santo tenha de apresentar, antes de embarcar, um teste negativo ao despiste da Covid.
  13. E sempre se assinale que esse teste negativo na origem foi a regra e suficiente até finais de novembro.
  14. Consigo tentar compreender (sem nunca concordar) que possa, eventualmente, vir a ser recomendável uma dupla testagem (com isolamento durante esse período) aos estudantes e emigrantes que desembarquem na Madeira e no Porto Santo até meados do mês de dezembro, ou no período em que há maior fluxo de entradas na Região, como forma de contenção e maior controlo dos casos.
  15. O que não consigo compreender (e muito menos concordar), é que nos dias imediatamente anteriores ao Natal não haja uma maior flexibilidade, sensibilidade e humanismo.
  16. O que não consigo compreender, é como é que o mesmo Governo que se revela ultra protecionista do vírus em relação aos madeirenses e portosantenses, não o seja em relação aos turistas continentais ou estrangeiros.
  17. O que não consigo compreender, é como é que o mesmo Governo que adota estas medidas para os madeirenses e portosantenses em prol da segurança dos residentes e do sistema regional de saúde, é o mesmo que se congratula pelo aumento e reforço do número de voos e ligações internacionais com a Madeira nesse mesmo período do ano.
  18. E sempre se diga, que muitos desses madeirenses e portosantenses são os mesmos que se veem obrigados a regressar nos dias imediatamente seguintes ao Natal, e sempre antes do final do ano, devido aos preços pornográficos praticados pela TAP e demais companhias aéreas nessa altura do ano.
  19. Repito, a premissa é sempre a mesma: falo da eventualidade de que essas mesmas pessoas que só conseguem viajar nos dias imediatamente anteriores ao dia de Natal, realizem e apresentem um despiste negativo à Covid antes de viajarem para a Madeira ou para o Porto Santo.
  20. E agora simplificando: hoje, qualquer não madeirense ou não portosantense (um Português natural dos Açores ou de Portugal Continental ou um estrangeiro) que viaje para a Madeira não tem de realizar a dupla testagem (com isolamento) imposta pelo Governo Regional aos madeirenses e portosantenses.
  21. De outro modo: um não madeirense ou não portosantense que desembarque na Madeira com um teste de despiste negativo à Covid não tem qualquer tipo de restrição de circulação ou limitação à sua liberdade.
  22. De um outro modo ainda: se A (madeirense) e B (continental, açoriano ou estrangeiro), ambos com teste de despiste à Covid de resultado negativo viajarem para a Madeira no mesmo voo, no mesmo dia: (i) A tem de realizar um novo teste entre 5 a 7 dias depois da realização do primeiro teste, cumprindo isolamento entretanto; e (ii) B pode circular à vontade, sem qualquer tipo de restrição e está dispensado de realizar um novo teste.
  23. Mas voltando ao cerne desta reflexão cívica: não seria razoável, humano e sensato ajustar as medidas definidas para os madeirenses e portosantenses que queiram passar o Natal (e tudo o que ele representa) na Região, em liberdade e com a sua família, e só consigam viajar, por razões estritamente profissionais, nos dias imediatamente anteriores ao Natal, desde que apresentem um teste negativo ao despiste da Covid na origem?
  24. Insistindo noutros pontos laterais a esta reflexão cívica: todos sabemos o quanto a economia madeirense depende do turismo, mas não se percebe como se legitima, justifica e compreende um tratamento desigual, discriminatório, desproporcional e inconstitucional dos madeirenses e portosantenses em relação a todos os demais, num período tão especial e importante como é o Natal, ainda para mais num ano como este.
  25. E questiona-se ainda se o próprio sistema regional de saúde está preparado para cumprir atempadamente os prazos da dupla testagem e a revelação atempada dos seus resultados para que os madeirenses e portosantenses sujeitos à dupla testagem e confinamento sejam, enfim, livres – muito embora essa liberdade possa apenas surgir no dia de regresso ao continente ou ao estrangeiro.

Talvez esta seja uma reflexão individualista e irresponsável, certamente impopular e de crítica fácil e barata – o assunto é, por si mesmo, social e politicamente bastante complexo, mas, nem o estado de emergência pode limitar a democracia e o espírito crítico; nem a situação aflitiva e pandémica que vivemos nos pode afastar de algum humanismo ou dos valores e princípios (alguns constitucionalmente consagrados) que a nossa sociedade deve continuar a preservar.

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