Numa das mais importantes distopias do século XX, o Nós de Yevgeny Zamyatin, publicado em 1927 e directamente inspirado na Rússia de Lénine, a operação final através da qual o Estado Único consolida o seu poder absoluto sobre os indivíduos consiste na excisão da imaginação. Ela visa abolir o principal obstáculo à uniformidade a que o Estado Único absolutamente aspira: a formação da alma nos seres humanos.

Lembrei-me de Zamyatin ao ler, por estes dias, um livro, já velho de dezassete anos, da autoria de uma historiadora da educação americana, Diane Ravitch, A polícia da linguagem. Nele, a autora analisa detalhadamente o modo como uma forma extrema de censura, ditada por vários grupos de pressão, representados por “especialistas” de “sensitividade” e de “viés” que trabalham para as editoras, passou a exercer-se, a partir dos anos 90 do século passado, na publicação dos mais importantes manuais escolares americanos, nomeadamente no que respeita àqueles que se ocupam do estudo da literatura e da história. O livro não poderia ser, como se diz, mais actual. Ele descreve, de forma quase exaustiva, um processo no qual estamos metidos até ao pescoço e que inspira um sem-número de acontecimentos recentes, do derrube das estátuas de figuras ligadas, real ou imaginariamente, ao nosso passado colonial às variadas formas de “cancelamento” de indivíduos que contrariam a feroz unanimidade que se procura instaurar na ordem do pensamento e àquilo que se poderia chamar micrologia (a ideia segundo a qual nada há de indiferente ou meramente relativo) no que toca ao uso da linguagem.

Não surpreendentemente, os tópicos sobre os quais a censura incide com mais alucinada desmesura são aqueles que dizem respeito às questões de género e às questões religiosas e, mais genericamente, a tudo aquilo que possa ser visto como diminuindo a “auto-estima” de certos grupos sociais. O resultado mais óbvio é esses manuais adoptarem uma linguagem perfeitamente higienizada, desinfectada, sem comum medida com a rugosa realidade da linguagem comum, que constitui o elemento imaginativo de base tanto do contacto dos seres humanos entre si como das grandes criações literárias e que é a condição do próprio acto de pensar no seu confronto com o real exterior. Diane Ravitch toca no essencial quando escreve: “O objectivo da polícia da linguagem não é apenas o de nos impedir de usar palavras objectáveis, mas de nos impedir de termos pensamentos objectáveis. A polícia da linguagem acredita que a realidade segue o uso da linguagem”. A outra consequência é que, acrescento, nessa forma particular de idealismo linguístico totalitário, haverá uma linguagem única a seguir, com significados precisos e unívocos sempre muito bem coladinhos às palavras, a restringirem radicalmente o escopo do pensamento. Na boa direcção, é claro.

Ora, acontece que não é assim que a linguagem, pela sua própria natureza, funciona. Com efeito, tanto a linguagem corrente como a linguagem da grande arte literária repousam sobre um princípio irredutível: o dos vários planos de sentido que as mais insignificantes palavras possuem, palavras que se prestam a variadas leituras, todas elas de uma maneira ou de outra já previstas pelas regras da sociedade, cabendo a cada indivíduo, por um acto de imaginação individual, escolher qual dos planos representa, em cada contexto particular, a boa interpretação. É claro que o erro é possível, mas é uma possibilidade inseparável do nosso modo humano de existência. Poder-se-ia mesmo dizer que não há humanidade fora desse princípio de escolha, que assenta na actividade produtora de sentido que é a imaginação.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O que a polícia da linguagem faz – com intenções que podem ser as melhores e mais igualitárias, diga-se de passagem, se nos abstivermos de considerar os impulsos tirânicos que são por regra consubstanciais a tais intenções – é abolir, em nome de uma exigência de literalidade absoluta, o acto imaginativo que preside a essa constituição de sentido. Tomemos um exemplo que Ravitch menciona. Quem não conhece os versos célebres de Bob Dylan em Blowin’ in the Wind: “How many roads must a man walk down / Before you call him a man?”? Qualquer ser humano, homem ou mulher, leva a cabo sem pestanejar a operação, que é integrante do prazer próprio da leitura da poesia, de apropriação imaginativa subjectiva do significado dessas palavras. Ora, eis como um “manual de desenvolvimento humano” transforma estes versos: “Como em tempos cantou um cantor popular, ‘How many roads must an individual walk down before you can call them an adult?’”. É o princípio da excisão da imaginação em acção, em nome da censura do género: “man” é substituído duas vezes, uma por “individual”, outra por “adult”, e “him” por “them”.

A correcção linguística da polícia da linguagem não encontra limites: trata-se de uma actividade por definição infinita, que não conhece em si qualquer princípio de auto-limitação. E que, por exemplo, incide também, e de que maneira, em tudo o que tenha a ver com questões raciais. Deste modo, várias edições contemporâneas introduzem naquele que é talvez o clássico fundador da literatura dos Estados Unidos – As aventuras de Huckleberry Finn, do grande Mark Twain – uma modificação de monta: eliminam a palavra nigger, que é usada em relação a Jim, o amigo de viagem do herói, que é negro. Não vale a pena mencionar que Twain era um inimigo da escravatura, e por aí adiante. O que merece, em contrapartida, ser sublinhado é que a excisão da imaginação é aqui pelo menos dupla: elimina-se uma palavra que representa uma forma corrente da linguagem no tempo em que o livro foi escrito, e, por aí, elimina-se o próprio tempo como elemento no qual as nossas crenças se modificam e evoluem, dando lugar a novas significações e novas possibilidades de pensamento. O que sobra é o delírio alucinado de um presente eterno e asséptico, sem coincidência possível com a transitoriedade da experiência humana. O que tem, é claro, catastróficas consequências no ensino da história: o caminho para a falsificação do passado encontra todas as portas abertas.

A excisão da imaginação manifesta-se ainda de múltiplas outras formas. Por exemplo, os jovens não devem ser confrontados, nos manuais escolares, com excertos de textos que evoquem experiências com as quais não têm contacto directo. Assim, a alguém que não tenha nunca visto o mar, nenhum texto deve ser apresentado que fale do mar. E o mesmo em relação às montanhas, ou à neve, ou ao que se quiser. Razão? Tal confrontação diminuiria a sua “auto-estima”, já que pressuporia experiências às quais não tem acesso directo. Tudo o que nos coloque na situação de ter de imaginar deve ser banido, já que tal situação arrisca ofender a nossa sensibilidade.

O carácter delirantemente higienizado desta maneira de ver as coisas manifesta-se ainda quando se fala de religiões e de práticas religiosas. Todas as crenças religiosas são óptimas e se equivalem na perfeição, bem como as práticas que, estrutural ou conjunturalmente, delas decorrem. Deste modo, como falar do terrorismo islâmico? A solução é simples: não se fala. O problema aqui é que, do mesmo modo que a ideia de uma linguagem perfeitamente desinfectada choca com a natureza da linguagem humana, o silêncio sobre o terrorismo islâmico entra em conflito aberto com tudo o que muito regularmente nos entra em casa pelos jornais e pela televisão. A resposta terá portanto de ser indirecta, pela via da postulação de um “discurso de ódio” universal, em que se pode meter tudo e mais alguma coisa, sem noção alguma da incomensurabilidade daquilo que se mete no mesmo saco. Aquilo que Douglas Murray chamou em tempos “islamofilia” tem sem dúvida várias razões de ser, mas indiscutivelmente uma delas é a recusa em aceitar a singularidade da violência de certas práticas que decorrem (estrutural ou conjunturalmente, repito) de determinadas crenças religiosas. Daí que os protestos contra os actos dos terroristas islâmicos, como no caso da recente decapitação do professor francês Samuel Paty assumam a forma (pouco imaginativa e declaradamente egotista) do “Je suis…”: “Je suis Charlie”, “Je suis Samuel Paty”, etc. (Por razões óbvias, a carnificina de 2016 em Nice escapou a este triste hábito.) Em todo o caso, também aqui a excisão da imaginação faz o seu costumeiro caminho. Só a imaginação nos faz capturar o individual, o singular, com tudo aquilo que o torna único. A falta de imaginação tende imediatamente a dissolvê-lo numa generalidade convenientemente asséptica onde todas as vacas são pardas.