No outro dia, Sérgio Sousa Pinto publicou, no Expresso, um artigo, “A irmandade dos idiotas”, sobre um episódio característico desta nossa época, “inverosímil de tão estúpida que é”, como ele escreve: a incineração de cerca de trinta livros, no Canadá, sob a supervisão de uma senhora, Suzy Kies, por os julgarem atentatórios da valente nação índia (já não se pode dizer “tribo”) Abenaki. Entre os livros que a senhora Kies julgou por bem cometer às chamas encontravam-se vários álbuns de histórias aos quadradinhos do Asterix, do Lucky Luke e do Tintim. O primeiro-ministro mais woke do mundo, Justin Trudeau, emitiu umas tímidas reservas contra o processo, mas fez notar que, não sendo índio, não lhe cabia emitir considerações sobre o modo como como os índios lidavam com aquilo que julgavam ofensivo para a sua “auto-estima”.

A senhora Kies reclamava, suponho que para justificar a sua missão purificadora, ter no seu sangue uma forte presença de sangue Abenaki, coisa que posteriormente se soube ser falsa, a exemplo de outras descendências maravilhosas, como, nos Estados Unidos, a da senadora Elizabeth Warren, a “Pocahontas” de Trump. Há muitos, muitos casos assim. Inventar a pertença imaginária a uma comunidade oprimida no passado pode dar um jeito dos diabos no avanço de uma carreira política. Permite comer o bolo e, ao mesmo tempo, guardá-lo muito bem guardadinho. É-se branquinho como tudo, um cara-pálida de gema, mas tem-se uma alma pele-vermelha que, enquanto não for conduzida às planícies do Grande Manitu, nos ajuda a ganhar a vidinha com proveito, enganando os tolos. E isto sem ter de viver, com a squaw e os papuses, num modesto tipi ou sem ser submetido aos dolorosos rituais de iniciação por que passou Richard Harris em A Man Called Horse. A época, “inverosímil de tão estúpida que é”, favorece a aldrabice e recompensa-a abundantemente.

Estas histórias de purificação por fogos reais ou metafóricos fazem parte da nossa paisagem contemporânea e vamos ter que viver com elas durante muito tempo. O problema é que a inverosimilhança, tornada sistema de pensamento, lentamente vai destruindo tudo, tornando falsa a nossa vida e corrupta a nossa memória. Convida-nos a renegar o prazer tido no passado, inclusive o prazer da infância. A estupidez inverosímil torna irreal o mundo da imaginação que é a nossa via de acesso privilegiada ao mundo humano. Sobra, idealmente, apenas uma lisa superfície quadriculada onde se inscrevem meticulosamente todos os delírios que nos obrigam a uma má-consciência arbitrariamente imposta de cima. Asterix e Lucky Luke foram pecados inexpiáveis pelos quais temos de pagar. E com os gestos de contrição todos que a religião woke quiser inventar. O grande ataque à imaginação, com vista à sua excisão, segue o seu curso aparentemente inexorável. Há, nos Estados Unidos, estados em que os manuais escolares não podem falar do mar, porque as crianças desses estados supostamente não terão nunca visto o mar e poderão experimentar uma perda de “auto-estima” que os fará sofrer terrivelmente. Noutros, o mesmo se passa com as montanhas. E por aí adiante.

O problema com o Tintim, se me é permitido, é ainda mais grave. Porque o que Hergé fez foi criar uma das poucas obras de cultura popular que ascendeu ao patamar da verdadeira arte, por uma conjunção improvável de um talento gráfico extraordinário, que nos faz reconhecer instantaneamente cada quadradinho dos seus livros, que vive na nossa memória, e de um génio narrativo que lhe permite criar personagens e situações que perduram para lá do encanto passageiro do divertimento. Há mesmo um maravilhamento sempre renovado que não pode ser reduzido a uma revisitação do momento inaugural em que, na infância, descobrimos as suas histórias. Por mais que saibamos de cor todos os desenhos e todas as peripécias, há sempre algo de novo, algo que começa pela primeira vez, a cada leitura. O prazer que temos com aquilo é tudo menos regressivo. Não se trata de voltar ao passado, a um universo de inocência. Trata-se de descobrir, como se fosse sempre pela primeira vez, a imaginação criadora em acção. Em acção de criação do mundo.

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E essa criação do mundo faz-nos entrar em contacto com o desconhecido e olhar para o já conhecido de forma nova. Há, obviamente, como em toda a arte, lugar para o preconceito. Toda a arte se encontra sempre doente de alguma coisa. Mas é a máxima expressão da inverosímil estupidez da época, para voltar a falar como Sérgio Sousa Pinto, pensar que o preconceito (que fecha ao outro) é, nas aventuras de Tintim, mais importante do que a descoberta (que abre ao outro). Não há, em Hergé, comparação entre uma coisa e outra. É a descoberta que, a todo o instante, ganha. E ganha com o mistério todo que é só seu, o mistério da descoberta permanente do mundo. É a glória de Hergé.

Entre a lisa superfície quadriculada da wokeness, da tal “irmandade dos idiotas”, e os quadradinhos de Hergé, a escolha é imediata. É a escolha entre a subjugação e a liberdade. Por isso, os nossos tutores woke, os inimigos da imaginação que querem fechar o mundo na sua prisão para que os nossos olhos não se dirijam para o desconhecido, são dignos merecedores de todos os insultos que o Capitão Haddock proferiu desde que apareceu nas aventuras de Tintim:

Analfabetos diplomados! Canibais! Cercopitecos! Cretinos dos Alpes! Ectoplasmas! Extractos de pepinos de conserva! Metralhadores de cueiros! Micróbios de cólera! Protozoários! Sementes de valdevinos! Zuavos!

Como há cerca de duzentos e vinte insultos, segundo cálculos sábios, fico-me por estes. Mas subscrevo todos os outros também. E, se aparecer alguém a discordar de mim, estou pronto, depois de analisar a lista, a escolher os que me parecerem mais convenientes a cada caso particular. E até a inventar algum novo, se o génio me assistir. Já tenho, aliás, um na manga: Espécie de bazuco!