No livro A Grande Mudança: origem e história do pensamento moderno, Stephen Greenblatt faz uma densa aproximação ao esforço levado a cabo pelos humanistas italianos dos séculos XIV e XV para recuperarem as obras esquecidas nas bibliotecas dos mosteiros da Europa central. Não era a curiosidade pelas ideias pagãs que motivava estes caçadores de livros; o que eles procuravam era aceder à gramática perfeita e ao estilo sublime da língua antiga. Mas ao disponibilizarem o acesso a essas obras, estes humanistas abriram a caixa de ideias que influenciaria a primeira geração de filósofos do pensamento moderno e inauguraram um período de intensa disputa intelectual sobre as possibilidades de compatibilizar as teorias pagãs com a doutrina cristã.

Quanto a Tito Lucrécio Caro (c. 94 – c. 50 a.C.), essa influência sentir-se-ia especialmente na geração que inicia o espírito científico moderno: Giordano Bruno, Galileu Galilei, Francis Bacon, Thomas Hobbes. Isto porque o manuscrito que Poggio Braccioloni descobriu em 1417 – Da natureza das coisas –, ao reclamar a herança da escola de pensamento grego inaugurada por Epicuro de Samos no final do século IV a.C., contém todas as sementes daquele espírito científico. Partindo do atomismo proposto por Leucipo e Demócrito, o epicurismo assenta num argumento radicalmente materialista: o universo é composto por átomos e vazio, e nada mais.

Ao receber esta herança grega, o longo poema do romano Lucrécio defende que todos os acontecimentos têm uma explicação física e natural – pelo que as histórias sobrenaturais ou supersticiosas (como as relativas à imortalidade da alma ou à intervenção divina no mundo) devem ser afastadas, em especial quando servem para exercer poder sobre o nosso espírito. A redescoberta do poema gerou, por isso, grande polémica numa sociedade ainda muito marcada pelos dogmas da Igreja, mas o seu reconhecimento foi aumentando à medida que o avanço científico se ia aproximando das suas intuições.

A partir de Lucrécio, a ciência moderna construiu um mundo novo, mas curiosamente a condição humana parece ter-se mantido. Em 55 a.C., Lucrécio procurava que os homens do seu tempo se libertassem das angústias e sofrimentos que os sobrecarregavam: contra os temores impostos pelas superstições religiosas, Lucrécio afirmava que não se deve temer a morte nem os castigos que nos esperariam após ela. Nos novos tempos científicos, já poucos temem esses castigos, mas continuamos a temer a morte. Ao contrário do que Lucrécio esperaria, um conhecimento mais aprofundado da natureza não nos libertou deste medo, agora envolto em novas superstições: a de que a doença e a morte não são naturais e devem ser evitadas a todo o custo; a de que podemos afastar o mais possível a morte; a de que essa é a maior  conquista da modernidade; a de que, por fim, o progresso tecnológico nos levará a uma nova condição de transhumanos.

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Ao convencer-nos destas novas superstições, o desenvolvimento científico substituiu o antigo fardo do castigo eterno pelo novo fardo da juventude eterna. Vivemos inebriados pela imagética de juventude e beleza que marca o espaço público, ao mesmo tempo que escondemos os mais velhos em lares. E é nesta fragilidade que a Covid-19 nos apanhou: fomos convencidos, ao longo dos últimos cem anos, de que tínhamos superado os nossos antepassados, mas vemo-nos perante os mesmos medos, como nas palavras imortalizadas pela voz de David Gilmour:

We’re just two lost souls
Swimming in a fish bowl
Year after year
Running over the same old ground
What have we found?
The same old fears

O que podemos aprender, então, com Lucrécio? O argumento que os epicuristas retiram da sua visão materialista é ético: uma vida boa reside na aceitação da natureza e do curso das coisas; uma aceitação que nos permita o distanciamento necessário para não deixarmos que o nosso espírito seja tomado pelo desejo desmesurado e o medo constante. Em especial, o medo da morte. Diz-nos Epicuro que “contra outras coisas é possível obter segurança, mas, quando se trata da morte, todos os seres humanos vivem numa cidade sem muralhas.” E se a morte é inevitável, as suas aflições, embora compreensíveis, não devem conduzir ao pânico que significará o triunfo absoluto do sofrimento.

Na verdade, nada ganhamos com o pânico coletivo que decorre das epidemias e pandemias; antes, ele pode conduzir-nos a tomar decisões irrazoáveis, como as que temos assistido e as que se adivinham. Mas também individualmente nos conduz à derrota: deixar que o medo se aproprie do nosso espírito torna-nos reféns da morte e do sofrimento. Para Lucrécio, o essencial seria, como diz Greenblatt, “abandonar a tentativa ansiosa e condenada de tentar construir muralhas cada vez mais altas, e, ao invés, cultivar o prazer”. É, no fundo, a sabedoria que Fernando Pessoa soube captar tão bem pela pena de Ricardo Reis:

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
(…)

patriciafernandes@pm.me