Depois da saída do Afeganistão praticamente sem conversar com os aliados, em particular os europeus e da NATO, a América de Joe Biden juntou-se ao Reino Unido de Boris Johnson e, nas palavras dos franceses, juntamente com os australianos deu uma enorme facada nas costas da França. Com vários impactos. Nas contas, porque o contrato dos submarinos era financeiramente muito importante; no prestígio, porque Macron foi traído à vista de todos; na economia, porque os franceses não iam apenas vender submarinos, iam exportar tecnologia e assim desenvolver o seu “complexo militar industrial”; na percepção de relevância, porque afinal os franceses têm uma presença humana (1,5 milhões) e militar (cerca de 8 mil soldados, alguns a bordo do seu porta-aviões Charles De Gaulle (o navio mais importante da frota militar francesa, com propulsão nuclear)) na região que acreditavam ser relevante; mas, sobretudo, na estratégia.

Nem vale a pena dizer que se fosse Trump a sair assim do Afeganistão ou a tratar desta forma os aliados, seria o escândalo. Justificado. Mas, para lá dessa avaliação, há aqui outros sinais que interessa interpretar.

É fácil saber o que Emanuel Macron pensa que a Europa deve ser, e em que medida acredita que será o veículo da grandeza, das aspirações francesas. Com o Reino Unido fora da União e Angela Merkel em breve reformada, o presidente francês imagina-se o líder europeu. E tem uma ideia de Europa. A questão é que a Europa não é nem será o que um presidente francês quiser. Não é esse o contrato. Mas tem de ser alguma coisa. E começa a ser essa a dificuldade.

Obama anunciou, Trump vociferou, Biden concretizou a transição para o Indo-Pacífico. A Europa, o médio-oriente, a Ásia central, nada disso o preocupa excessivamente . Ou, pelo menos, nada disso faz parte das prioridades americanas.  Chegou ao fim o tempo de transição entre o fim do pós-guerra fria e o futuro. E nesse futuro, a América acredita que terá de competir com a China, conter a China e parecer disponível para defender os seus aliados regionais das ameaças ou agressões da China. A reorganização do mundo está a estruturar-se.

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No meio disto, existe uma questão europeia. Saber o que é e para que serve. Voltar aos manuais de História ajuda a compreender como e para que nasceu, mas esclarece pouco sobre o futuro. A Europa obviamente que já não é apenas um mercado comum. Mas também não é uma entidade soberana. E, em rigor, essa discussão é quase fútil. O importante não é definir que tipo de animal político e institucional é a Europa. O que importa, porque tem consequências, é discutir que objectivos tem.

Os americanos têm se esforçado por explicar que somos aliados, mas não podemos ser dependentes. Quer isso dizer que a Europa deve ser alternativa aos Estados Unidos? Um terceiro género, algures entre a América e a China? Oxalá não.

Nada de fundamental nos distingue dos Estados Unidos da América. Sim, somos diferentes; sim, temos mais Estado social e menos competitividade; sim, estamos menos disponíveis para ir à guerra; sim, nós achamos que eles têm um capitalismo menos regulado e mais agressivo. Admitamos que sim. Tudo isso são, ainda assim, detalhes considerando os modelos em confronto. O nosso lado é o lado de cá. À nossa maneira, mas é.

A principal lição que a Europa, e França, necessitam de tirar é que os Estados Unidos reorganizaram as suas prioridades geopolíticas, mas não a sua ordem de valores. Nós, europeus, precisamos de fazer o mesmo. Mas para isso precisávamos de acreditar que há um lugar no mundo que nos é comum, aos europeus.

Há, entre os europeus, uma coligação de descrentes pouco útil a esta discussão. Entre nacionalistas serôdios, fetishistas da decadência e carregadores de culpa do Homem branco, encontra-se pouco terreno fértil para pensar a médio prazo.

Não são votos por maioria, novos Tratados ou estratégias para cativar o coração dos utilizadores do Instagram e do Tik-tok e os eternamente dependentes de mais um fundo que é preciso mobilizar. Nem é desenhar o futuro a partir do centro, com planos quinquenais. É pensar que lugar queremos ocupar se não queremos decair, ser irrelevantes e dependentes. E isso faz-se com economias fortes, sociedades civis activas e pensamento. Muito mais importante que uma conferência sobre o futuro da Europa que faz de simulacro de vontade popular, faltam universidades que discutam a Europa, think-tanks que testem opções, fundações que se empenhem em mobilizar a ciência, gente que escreva ensaios e os discuta, e empresas que tenham assumidamente interesses. Sem pensamento, no resto é espúrio.

E tudo isto sem deixarmos de sermos o que somos, intrinsecamente ocidentais. Como os americanos.

Henrique Burnay (no twitter: @HBurnay), consultor em assuntos europeus, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Madalena Meyer Resende, João Diogo Barbosa e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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