Revela-se essencial desconstruir as causas presentes da violência contra as mulheres, em tempos de guerra, uma vez que os fundamentos da mesma, em cenários de guerra, assentam nas mesmas causas e preconceitos, presentes em tempos de paz, como se de um continuum de violência se tratasse, mas que se acerbam, nos conflitos contemporâneos, assumindo novos contornos.

É isso mesmo que procuramos concretizar no livro “A violência contra as mulheres e violência de género, como obstáculo à paz e segurança internacional”, partindo da análise da violência, presente nos conflitos contemporâneos, incidindo na violência contra as mulheres e no seu papel na construção das diferentes identidades, ao desconstruir dicotomias, reveladoras de mitos precursores da história da guerra e das nações, como guerra/ paz/ mulher-vítima/ homem guerreiro, liberdade/opressão e povos relevantes/ povos dispensáveis.

A violência contra as mulheres nas “novas guerras” é um impedimento ao desenvolvimento dos países, uma ameaça à democracia, impossibilitando alcançar uma paz sustentável e duradoura.

Walt Whitman considerava que a guerra não poderia ser transcrita. Acrescentamos que nem o silêncio das experiências das mulheres, vítimas de violência, (em 2022, a ONU, registou que 94 % das vitimas de violência sexual, nos conflitos contemporâneos, eram mulheres e 32% crianças) invisibilizadas durante os processos de paz, consideradas como ” bónus” do inimigo, um efeito colateral do conflito, com sua voz silenciada, alheia aos processos de paz.

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A guerra não é apenas a negação da paz. A “suposta paz” é também a violência silenciada por outros meios, que se alimenta, hoje em dia, do clima de incerteza, do ódio disseminado e dos constantes ataques à democracia, impedindo o reconhecimento e proteção dos Direitos Humanos das Mulheres no quadro do Direito Internacional dos Direitos Humanos e em especial durante os conflitos armados.

As “novas guerras” ignoram quase sempre as relações subjacentes que estão na origem dos conflitos, violando a especial proteção das mulheres e raparigas durante os conflitos, e negligenciando as diferentes dimensões da violência de género, nos processos de prevenção e reconstrução pós-conflito.

A violência contra as mulheres e raparigas, nos conflitos contemporâneos, tem sido considerada uma “arma” e “método” de guerra, uma “estratégia de guerra legitimada” naturalizada pela comunidade Internacional e negligenciada pelas leis da Guerra, Direito Internacional dos Direitos Humanos, Direito Internacional Humanitário e Direito Penal Internacional.

A expressão “arma de guerra” assenta numa visão tradicional e reducionista das Relações Internacionais e do Direito Internacional, que desconsidera e secundariza as experiências traumáticas das vítimas dos conflitos, desumanizando e invisibilizando as mulheres vítimas de violência durante as guerras da atualidade.

A utilização devastadora da violência sexual como “arma de guerra”, presente em conflitos como na ex- Jugoslávia, Ruanda, Sudão, perpetua-se nos conflitos da atualidade, segundo relatórios da ONU, como na Síria, Afeganistão, Haiti, Mali, Etiópia, Myanmar, Ucrânia, dos dois lados do conflito Israelo-Palestiniano, entre outros.

A violência sexual não é uma “arma inevitável” dos conflitos armados, é uma arma ilegal, correspondendo a uma “guerra assimétrica” cujo objetivo não é a conquista territorial, ou o domínio dos recursos, mas apenas aterrorizar, humilhar, causando sofrimento gratuito às suas vítimas, constituindo uma violação grave do Direito Internacional Humanitário e das leis da guerra.

Atendendo ao Protocolo I (adicional às Convenções de Genebra de 1949) referente ao uso de métodos e meios de guerra, prevê-se no seu art.º 35 nº1 que o seu uso não é ilimitado, sendo proibida expressamente a utilização de armas e projeteis ou métodos de natureza a causar danos desnecessários às suas vitimas, reclamando, por exemplo, a aplicação da Convenção sobre Proibição ou Limitação do Uso de Certas Armas Convencionais, que podem ser consideradas, como produzindo efeitos traumáticos excessivos ou ferindo indiscriminadamente.

Nos conflitos de cariz étnico, ou com base na raça, em que as mulheres têm sido repetida e generalizadamente violadas, por um grupo de forma a garantir a gravidez, e sem assistência, deixando os “filhos da guerra e do inimigo ”- Bad Blood Children, estamos perante, não uma “arma de guerra”, mas uma “arma de humilhação e destruição”, uma forma de limpeza étnica, de todo um grupo, constituindo crimes de genocídio e crimes contra a humanidade.

As causas que estão na origem das “novas guerras”, presentes nos processos de resolução de conflitos, são mais profundas das que resultam da sua interpretação, têm natureza estrutural (politica, económica, social e cultural) e são muitas vezes desconsideradas.

As resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre Mulheres, Paz e Segurança, RCSNU 1325 (2000) e as últimas resoluções, RCSNU 2467 (2019) e RCSNU 2493 (2019) não cobrem as diferentes formas de violência contra as mulheres, como a violência doméstica, ou a violência contra as mulheres nas forças armadas, negligenciando as novas ameaças contemporâneas, como os desastres climáticos e a crise de refugiados, que afetam sobretudo mulheres e crianças.

Consideramos que é um dever de justiça reinterpretar a história e dar voz às mulheres, também como mediadoras de paz, relembrando o legado que foi deixado pela WILPF (Liga Internacional das Mulheres para Paz e Liberdade) e pelas suas fundadoras, como Jane Addams (prémio Nobel da paz em 1931) no seu esforço de estender a paz a toda a terra” ou Emily Balch, (prémio Nobel em 1946) ao procurara fraternidade, o entendimento entre as Nações, a redução do armamento”, preconizando o sonho comum, que deixamos numa incerteza: Estará o mundo preparado para a paz?