Acreditaria se lhe dissessem que, de acordo com a Mecânica Quântica (teoria que descreve a natureza a escalas atómicas ou subatómicas, isto é, sistemas de dimensões inferiores ao nanómetro), a sua casa, o seu carro, as pessoas, sim você mesmo, como tudo no nosso Universo que é constituído por átomos, são praticamente (mais de 99,99999 %) espaço vazio? Certamente que duvidaria porque os nossos sentidos, nomeadamente a visão, transmitem-nos a informação que os seres e objetos são sólidos, com estrutura bem definida, e a maioria é até opaco à luz que vemos.

Certamente que consideraria que essa teoria, a Mecânica Quântica, é absurda. Mas não só não é absurda como está na ordem do dia: parece estar a inaugurar-se uma nova era da disciplina, agora que um trio de cientistas foi reconhecido pelo Prémio Nobel da Física. A verdade é que a anterior descrição da matéria foi largamente comprovada por inúmeras experiências, pelo que os nossos sentidos, desenvolvidos para descrever a Natureza à nossa escala (sistemas com dimensões entre o milímetro e o quilómetro), falham na descrição da Natureza noutras escalas muito mais pequenas.

O que é que pensaria se lhe dissessem que, também de acordo com a Mecânica Quântica, não é possível antecipar, de forma determinística ou precisa, as trajetórias de partículas subatómicas, como os eletrões, e que podemos apenas determinar a probabilidade de as partículas se moverem/deslocarem numa dada trajetória? Apesar de as suas convicções poderem ter sido fortemente abaladas pela situação anteriormente descrita, certamente que duvidaria de novo, e consideraria que, apesar de se já se ter provado experimentalmente que a Mecânica Quântica fornece descrições adequadas, neste caso falharia. Poderia considerar que a aleatoriedade das partículas subatómicas é apenas aparente, e que resulta de não estarmos na posse de todo o conhecimento. Assim, caso tivéssemos acesso à informação em falta (que designaremos variáveis escondidas) passaríamos a ter uma descrição determinística.

Neste caso, estaria acompanhado pelo icónico físico Albert Einstein, personificação do génio humano, que duvidou, até à sua morte, da descrição probabilística da Natureza feita pela Mecânica Quântica. Esta forte dúvida, foi expressa de forma meridional quando, numa célebre discussão com Niels Bohr, um físico que apadrinhou a Mecânica Quântica desde as suas origens, disse: “Deus não joga aos dados”. Posteriormente, Bohr respondeu: “Einstein, pára de dizer a Deus o que fazer”. Por forma a defender a sua posição, Einstein, juntamente com Boris Podolsky e Natahn Rose, publicaram um artigo em 1935, onde argumentam que se a Mecânica Quântica considerasse as “varáveis escondidas”, os aparentes paradoxos quânticos seriam explicados.

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Na Física, tal como noutras ciências experimentais, a experiência é o juiz absoluto, que valida as teorias e as transforma em factos ditos científicos. Assim, com o objetivo de trazer luz a esta discussão, John Bell, em 1964, concebeu uma experiência mental tendo por base um teorema, fundamentado na Mecânica Quântica, em que os estados de partículas emparelhadas estão tão correlacionados que não podem ser explicados por variáveis escondidas.

Em 1969, o físico John Clauser e colegas modificaram a abordagem de Bell e propuseram uma experiência com vista a testar o teorema com dados fornecidos pela Natureza, em que consideraram a polarização dos fotões (partículas de luz). A polarização de um fotão pode assumir um de dois valores relativamente à orientação de um filtro. Os óculos de sol polarizados, por exemplo, bloqueiam fotões que são polarizados de uma forma e deixam passar fotões polarizados de outra forma. Em 1972, Clauser e os colegas observaram experimentalmente, e pela primeira vez, fortes indícios de correlação entre as partículas emparelhadas. No entanto, foram apresentados argumentos de que os resultados das experiências poderiam ter sido afetados por condições que não foram controladas. O físico francês Alain Aspect, aperfeiçoou a abordagem de Clauser e, em 1982, realizou diversas experiências que confirmaram as conclusões anteriores de Clauser. No entanto, não tinha conseguido controlar todas as situações que poderiam interferir nos resultados experimentais. Em 2017, o físico austríaco Anton Zeilinger e colegas demonstraram, numa experiência perfeitamente controlada, a existência de uma forte correlação, fechando a porta à teoria de Einstein, Podolsky e Rosen das variáveis escondidas.

A importâncias destes trabalhos foi reconhecida pelo comité Nobel ao atribuir o Prémio Nobel da Física de 2022 a Clauser, Aspect e Zeilinger pelos seus trabalhos sobre o emparelhamento quântico.

Tal como aconteceu nos primórdios do desenvolvimento da Mecânica Quântica, em que ninguém conseguiria antecipar as consequências que uma teoria exótica teria na evolução da humanidade (esteve na base de desenvolvimentos tecnológicos que formataram o nosso dia-a-dia, tais como os lasers, os semicondutores, e no desenvolvimento de armamento nuclear e de equipamentos de médico), não conseguimos antecipar por completo as consequências dos trabalhos destes cientistas. Atualmente, apenas podemos afirmar que estará certamente na base de tecnologias que ainda não conhecemos e de outras de enorme potencial que estão em fase embrionária, como a informação quântica e a computação quântica.