Quando a nossa vida, pessoal e profissional, é cada vez mais determinada por algoritmos criados por empresas, cada uma com as suas convicções e motivações, passou a estar presente uma decisão, que pode ser mais ou menos consciente, mas que tod@s como utilizadores temos que tomar cada vez que subscrevemos um novo serviço digital, gratuito ou pago, ou adquirimos um novo equipamento tecnológico com ligação à internet: com que entidades partilhamos a nossa informação pessoal e comportamental. Numa economia digital que vive inteiramente dos dados de milhões de utilizadores, aqueles que os fornecemos, sabemos muito pouco sobre os modelos de negócio que lucram desmedidamente com a nossa informação pessoal e comportamental. Por outras palavras, sabemos muito pouco sobre o Capitalismo de Vigilância que se tem vindo a estabelecer pela ausência de regras à captação e tratamento dos dados. Este é considerado por Soshana Zuboff no seu livro The Age of Surveillance Capitalism, de 2019, como sendo o novo formato de capitalismo inerente à Era da Informação, onde o comportamento dos indivíduos é registado, antecipado e moldado, não com o intuito de beneficiar os proprietários da informação, mas sim empresas que se inserem no segmento dos “mercados do futuro”. Isto, significa que a capacidade influenciadora e preditiva de muitas das empresas que capturam a nossa informação é tão grande que, ao dia de hoje, existem outras empresas, às quais a nossa informação comportamental é cedida pelas primeiras, sem o nosso consentimento, já a prepararem-se para nos venderem aquilo que nós ainda nem sabemos que vamos comprar.

Em 2018, iniciou-se a aplicabilidade do Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD) na União Europeia (UE). Mas, ainda que tenha sido um passo em frente para tentar impor uma conduta responsável e responsiva às empresas, temos um longo caminho a percorrer dado que este regulamento apenas se aplica aos membros da UE e que, na sua maioria, as empresas tanto dentro como fora deste espaço económico não são ainda suficientemente transparentes sobre os algoritmos que desenvolvem e o tratamento dos dados que realizam. É, essencialmente, um problema ético que incide sobre os algoritmos, dados e práticas digitais, tal como apontava Klaus Schwab no seu livro Moldando a Quarta Revolução Industrial, de 2018. A questão é que, ao longo dos tempos, se tem considerado que a ética é um raciocínio filosófico, da ocupação dos filósofos, quase como se a filosofia tivesse pouca aplicação na nossa realidade atual, o que acabou por levar a um grande desentendimento sobre a pertinência da ética nos dias que correm, a vários níveis, inclusive quando se trata de tecnologia. A ética é agora chamada à conversa muito devido aos desafios levantados pela Inteligência Artificial (IA). A noção de a ética vir nutrir a tecnologia é tida como uma novidade que começa a ser falada, mas ainda por poucos, quando deveria ser já do conhecimento e do domínio daqueles que participam no desenvolvimento e lançamento de serviços digitais e equipamentos tecnológicos, especialmente quando é cada vez mais fácil e rápido levar novas aplicações e equipamentos tecnológicos ao mercado.

Apenas nos últimos dois anos a disciplina da Ética começou a ser incorporada nos programas curriculares dos cursos de tecnologia. No Fórum da Democracia de Atenas de 2020 o presidente da Microsoft, Brad Smith, em conversa com o historiador Yuval Noah Harari, afirmava que nem mesmo as melhores escolas a nível mundial estavam ainda a contemplar a disciplina da Ética nos seus programas curriculares. Assim, a responsabilidade de formar para o raciocínio ético tem recaído maioritariamente sobre as empresas. Contudo, realisticamente, as empresas, na sua maioria, não estão sensibilizadas para tal e falham por desconhecimento, outras, poucas, estão conscientes, mas falham por desinteresse de causa e, por fim, a percentagem de empresas que estão a abordar devidamente o tema pode ser considerada ínfima. Mas importa frisar que, perante a iminência de potenciais impactos irreversíveis, há um policiamento que tod@s nós como utilizadores podemos e devemos fazer uma vez que o poder está do nosso lado; somos nós quem decide com quem partilhamos a nossa informação. E isso, tem muita força.

As sociedades contemporâneas, tanto a ocidental como oriental, dos países desenvolvidos, estão assentes num conjunto de pré-conceitos, conceitos e preconceitos que são os mesmos que estão a ser embebidos nestes algoritmos que fomentam um cenário onde os ricos estão a ficar mais ricos e os pobres estão a ficar mais pobres. Estes algoritmos atuam na atribuição de créditos bancários, na aquisição de seguros, nos processos de recrutamento, entre tantos outros contextos de cariz sensível, como expõe Cathy O’Neil no seu livro WeaponsofMath Destruction, de 2016, e têm uma linha de ação tendencialmente discriminatória; em parte porque não passaram pelo filtro da ética, em parte, porque, por norma, aqueles que desenvolvem os ditos algoritmos provêm de contextos privilegiados e, nunca tendo vivido outra realidade, estão menos preparados para antever um impacto prejudicial do qual nunca foram alvo, e provavelmente nunca serão. Por outro lado, este impacto é em si muito difícil de apurar. Naturalmente que não temos que passar por um contexto desfavorável para desenvolver algoritmos éticos e inclusivos, temos sim que alterar o nosso foco. Acredito que só é possível construir algoritmos éticos e inclusivos quando a mentalidade por detrás da sua criação se focar nos objetivos coletivos de longo prazo e não nos objetivos individuais de curto prazo; o que tem um custo elevado para as empresas, não só porque exige um período de investigação e reflexão no qual, dificilmente, estarão dispostas a investir, mesmo que para o bem de tod@s, como porque terão que colocar o propósito das suas empresas à frente de um lucro extra em vários momentos.

Esta consideração evoca outra questão: nós, os empreendedores e gestores de hoje, devemos também, mais do que saber sobre a nossa área de negócio, compreender o mundo no qual vivemos para percebermos de que modo as nossas soluções servem efetivamente as pessoas e o planeta. Existe ainda um desfasamento considerável entre as necessidades locais, regionais, nacionais, e globais atuais e as áreas de interesse dos empreendedores e gestores, no meu entender devido ao desentendimento de um mundo volátil, incerto, complexo e ambíguo (VUCA) que é cada vez mais frágil, ansioso, não linear e incompreensível (BANI). Assim, da mesma forma que os utilizadores podem escolher em que plataformas se registam e que equipamentos adquirem, os gestores e empreendedores podem decidir a que causas se dedicam e que tipo de soluções digitais e tecnológicas desenvolvem. Esta consciencialização, fundamental, partirá de um entendimento holístico do mundo atual, da compreensão da noção de interdependência e de uma intenção inequívoca de colmatar as fragilidades do coletivo.

Dito isto, algoritmos, dados e práticas digitais devem ser um instrumento para fomentar um mundo onde exista “fraternidade na economia, igualdade na justiça e liberdade na cultura”, como aprendi recentemente com um amigo, pois acredito serem estes os moldes das sociedades do século XXI. Filósofos tecnológicos precisam-se, urgentemente.

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