1 Não sendo eu jurista, fui aprendendo os conceitos jurídicos básicos lendo e estudando processos judiciais de diferentes jurisdições, e aprendendo com magistrados, advogados ou professores de Direito que tive o prazer de conhecer ao longo da minha carreira.
E foi com grandes juristas que aprendi algo fundamental num Estado de Direito: as leis são produzidas pelo legislador de forma geral e abstrata, enquanto que as sentenças judicias aplicam a lei a casos concretos. Se tivermos leis feitas à medida — contra ou a favor de alguém em concreto — é meio caminho andado para o arbítrio, para o abuso de poder e para o autoritarismo.
Não significa isto que, de forma muito excecional, não possa uma lei (nomeadamente uma amnistia) ser aprovada pelo poder legislativo para solucionar casos concretos judiciais em nome de uma reconciliação de diferentes grupos que compõem a comunidade. Mas tal instrumento tem de ser efetivamente excecional e muito bem fundamentado.
2 Vem isto a propósito do acordo histórico (pelas piores razões possíveis) que Pedro Sanchéz já assinou com uma parte dos independentistas catalães [a Esquerda Republicana da Catalunha] e se prepara para assinar com a última força partidária [Juntos pela Catalunha] que organizou o referendo ilegal da independência da Catalunha em 2017.
O acordo implica um negócio político puro: os independentistas catalães mantém Pedro Sanchéz no poder (sem eles, não há há maioria no Parlamento para o lado do PSOE) e, em troca, os socialistas aprovam uma amnistia que livra Carles Puigdemont, ex-líder da Generalitat, e outros dirigentes independistas de todas as condenações e investigações que ainda perduram na Justiça espanhola — e, claro, anula o mandado de captura internacional emitido em nome do fugitivo Puigdemont.
Vamos ser claros. O passo de Pedro Sanchéz, que perdeu as eleições para o PP de Feijóo, é puro oportunismo político levado ao extremo. É uma decisão consciente que descredibiliza o regime democrático e a respetiva classe política e corrói as bases do Estado de Direito.
Seja quem for, não pode ser beneficiado pelo poder político com leis-fotografias que comportam soluções específicas para casos concretos, anulando assim automaticamente condenações já transitadas em julgado, processos e investigações em curso. Uma amnistia desta natureza é uma interferência descarada do poder político na administração da justiça.
Pior: quando estamos perante um puro negócio de sobrevivência política de Pedro Sanchez, tal interferência só pode ser feita por alguém que não tem escrúpulos e vergonha na cara. Os problemas judiciais não têm — e nem podem ter — solução política. Ponto.
3 Pode-se dizer que o chamado problema catalão é algo inerente à própria existência da Espanha moderna. Mas tem vindo a agravar-se claramente pela mão dos socialistas espanhóis desde 2006 — e sempre com a mesma abordagem hiper-mega optimista sobre a natureza humana (no caso, dos independentistas catalães) que caracteriza os progressistas.
Começou com José Luis Zapatero que, em 2006, decidiu abrir a caixa de pandora ao aprovar uma revisão do Estatuto de Autonomia da Catalunha que reconhecia que a Catalunha era “uma Nação”. Zapatero jurava em entrevistas, como recordou aqui o Diogo Noivo, que passados 10 anos (em 2016, portanto), “Espanha estará mais forte” e “a Catalunha estará melhor integrada em Espanha”.
Em 2017, passados 11 anos anos (e não 10 anos), a Generalitat liderada por Carles Puigdemont organizou um referendo ilegal para a independência da Catalunha — e financiou tudo com fundos públicos. Como se vê, nem a Espanha ficou “mais forte”, nem a Catalunha estava “melhor integrada”, como previa Zapatero.
Carle Puigdemont e vários dirigentes catalães fugiram de Espanha, para não serem presos, tendo-se refugiado na Bélgica, enquanto que outros — como Oriol Junqueras, vice-presidente da Generalitat e mais dez dirigentes catalães — foram presos, acusados e condenados a penas de prisão efetiva pelos crimes de sedição, desvio de fundos e desobediência.
Como bom progressista, Pedro Sanchéz voltou a repetir a receita de Zapatero: estendeu a mão para um acordo e fez aprovar em 2021 um indulto a todos os nacionalistas catalães presos, libertando-os da prisão. Em troca, nenhum deles se mostrou propriamente arrependido. Pelo contrário, insistem na independência da Catalunha por via de um novo referendo.
Mais tarde, em 2022, Sanchéz fez aprovar uma reforma penal que acabou com o crime de sedição (foi substituído por outro menos grave) e fez baixar as penas de prisão para o crime de desvio de fundos públicos — uma decisão tomada à medida dos independentistas com contas a prestar à justiça, visto que a medida poderia ser aplicada retroativamente.
E, finalmente, chegamos à lei da amnistia que Pedro Sanchéz aprovará após assinar o acordo com o Juntos pela Catalunha — acordo que está a demorar porque Carles Puigdemont quer uma amnistia que abranja qualquer hipótese de existir um processo penal contra qualquer independentista catalão.
4 Tudo isto é absolutamente lamentável porque é a politização total e absoluta da administração da justiça. Por isso mesmo é que existe o princípio da separação de poderes — um princípio estruturante de qualquer democracia. O poder político não dá ordens, não influencia e não determina a administração da Justiça. Há um principio de check and balances para que o executivo, o legislativo e o judicial se equilibrem entre si — mas sem que um mande ou se sobreponha ao outro
Mal comparado, é como se o Governo de António Costa se preparasse para aprovar no Parlamento (onde o PS tem maioria absoluta) uma amnistia a propósito do 25 de abril para resolver todos os problemas judiciais de José Sócrates, ex-líder do PS.
Vamos recapitular para que não subsitam dúvidas: os problemas judiciais não são problemas políticos, logo não podem ter uma solução política. Se alguém violou a lei, esse alguém tem de ser sancionado — sob pena de a administração da justiça ser um puro arbítrio que funciona consoante o réu tem poder para influenciar as decisões judiciais.
5 Entre tantas coisas extraordinárias que aconteceram nos últimos anos em Espanha, como o Tribunal Constitucional ter ordenado a suspensão da sessão parlamentar da reforma penal em 2021, a tensão entre o poder político e o poder judicial está a escalar de uma forma que está cada vez mais próxima dos casos da Húngria e da Polónia — já sinalizados pela Comissão Europeia como países que não respeitam o Estado de Direito.
Aliás, não é por acaso que os relatório da Comissão Europeia sobre a situação do Estado de Direito em Espanha respeitantes a 2020 e a 2022 têm alertas importantes sobre a “perceção da politização” da administração da justiça, com o Governo a interferir no Ministério Público e a paralisação institucional do Conselho Geral do Poder Judicial (órgão de gestão das magistraturas semelhante aos conselhos portugueses) por falta de acordo entre PSOE e PP para nomear novos membros para um órgão que terminou o mandato em dezembro de 2018.
A reação do poder judicial à possibilidade cada vez mais certa de o futuro Governo Sanchéz aprovar a lei da amnistia tem sido igualmente forte. Esta segunda feira surgiram duas notícias que apontam para novo confronto institucional entre o poder executivo e judicial.
O Conselho Geral do Poder Judicial, que tem uma maioria conservadora que foi indicada pelo PP, emitiu um comunicado inédito e sem precedentes contra o primeiro-ministro. Além de acusarem Sanchéz de querer aprovar uma lei da amnistia que não respeita o princípio do Estado de Direito, a maioria do Conselho utiliza termos duríssimos contra o líder do PSOE:
- a lei da amnistia fará com que “os líderes políticos” estejam “isentos de responder pelos seus crimes perante os tribunais, qualquer que seja a natureza dos seus crimes, para que um aspirante a Presidente do Governo possa obter o benefício pessoal e político de impedir o governo de outras forças políticas ou, expresso por outro lado por outro lado, para poder permanecer no Governo”.
- “Isto significa degradar e transformar o nosso Estado de direito num objeto de marketing ao serviço do interesse pessoal que procura apresentar-se, a partir da rejeição do pluralismo político, como o interesse de Espanha”, lê-se no comunicado.
E esta segunda-feira ficou-se a saber que a Audiencia Nacional — um tribunal especial com competência territorial alargada sobre todo o território espanhol que investiga e julga a criminalidade mais complexa — está a investigar Carles Puigdemont e outros dirigentes independentistas num novo processo, conhecido como o “Tsnunami Democrátic”.
O juiz de instrução criminal responsável pelo caso — em Espanha são os juízes que lideram a investigação — indiciou Puigdemont pelo crime de terrorismo e quer ouvi-lo como suspeito.
A notícia caiu como uma bomba quando Pedro Sanchez ainda não assinou o acordo que lhe falta com o partido de Carles Puigdemont. Talvez por isso mesmo, os dirigentes Juntos pela Catalunha afirmaram que estavam a negociar uma amnistia o mais abrangente possível, para incluir novos casos que surjam.
A administração da justiça passou a ser um puro e mero negócio político em Espanha. Um absurdo e a negação do Estado de Direito Democrático.
6 Não tenho grandes dúvidas que o que está a acontecer em Espanha por, repito, puro oportunismo político de Pedro Sanchéz é um ataque à soberania e à integridade territorial de Espanha. O líder do PSOE está a vender o seu país por um prato de lentilhas, pensando que a sua passagem efémera pelo poder justifica tudo.
Sanchéz está a promover uma profunda divisão da sociedade espanhola que poderá ter consequências imprevisíveis num país que ainda tem memória da guerra civil sangrenta nos anos do século passado. Muitas dessas feridas ainda estão salientes na sociedade espanhola.
As manifestações que temos visto nos últimos dias um pouco por toda a Espanha provam isso mesmo, como também essa divisão é comprovada por sondagens recentes.
Por exemplo, o apoio que Pedro Sanchéz teve no referendo interno que promoveu na semana passada no PSOE (87% dos militantes aprovaram a estratégia de Sanchéz, tendo votado apenas 60% do universo eleitoral), não é propriamente corroborado pelo eleitorado natural dos socialistas.
Ou seja, 40% dos eleitores do PSOE (não dos militantes) estão contra a lei da amnistia, enquanto que 51% de todos os inquiridos rejeitam o plano de Sanchéz e 59% dos inquiridos defende eleições antecipadas.
A vida de Sanchéz não está fácil mas a de Espanha muito menos.
7 E António Costa, onde está o líder dos socialistas, figura cada vez mais importante entre o grupo socialista no Parlamento Europeu? O que tem ele a dizer e, já agora, os camaradas socialistas europeus que costumam ser muito ágeis a criticar a Hungria ou a Polónia?
Tendo em conta que Costa sempre muito afoito a garantir que o seu apoio ao princípio da separação de poderes, seria muito interessante ouvir o que tem o primeiro-ministro português a dizer sobre o que está a passar-se com Espanha.
É verdade que António Costa também teve a sua boa dose de oportunismo político ao negociar em 2015 um acordo parlamentar com o PCP e com o BE para conquistar o poder. Talvez por isso mesmo prefira estar calado.
Contudo, talvez fique calado porque o apoio de Pedro Sanchéz será fundamental para que Costa alcance um lugar europeu de destaque. Costa é um florentino — não se move por ideias ou princípios mas sim por sentido de oportunidade. E, nesse aspeto, não é assim tão diferente de Sanchéz.
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