A primeira e última vez que meti os pés numa casa noturna, para usar o termo eufemístico, tinha 21 anos e ia entrevistar um político. As normas cavernícolas do dr. Fernando Medina, proibindo o funcionamento dos bares para lá das duas da manhã aos dias úteis, fizeram com que o entrevistado chamasse um táxi à porta do restaurante onde havíamos jantado e dissesse, com toda a tranquilidade: “Não se preocupe, já sei onde vamos.” O taxista, pela rapidez com que lá chegou, também sabia. O porteiro, pelo amistoso cumprimento com que nos abriu as portas, comungava dessa previsibilidade. Eu, apesar de não auferir horas extraordinárias, fui de arrasto. Após umas escadas que o senador poderia ter descido de vista vendada, chegámos ao nosso destino. Uma mesa espaçosa, circundada por um banco de cabedal encurvado, virada para uma pista de dança espelhada. Ao centro, um palco elevado num estrado de meio metro, dominado por um varão que refletia os holofotes da cave convertida em salão. Eu pedi uma água fresca, que veio numa pequena garrafa; o entrevistado pediu uma garrafa sua da noite anterior, cujos dois copos anexos imediatamente destronaram a minha Luso, mineral natural. À nossa volta, um enxame de senhoras pouco vestidas inquiriram se poderiam sentar-se connosco. O político sorriu. Eu tirei o bloco de notas e o gravador e respondi, com apóstola cortesia, “desculpe-me, estou a trabalhar”, e uma delas, sem um segundo de hesitação, prontamente ripostou: “Eu também.”

Há uns dias, quando dei com o Primeiro-Ministro passeando as suas adoráveis pantufas de borracha por Bruxelas fora, lembrei-me dessa noite e da dançarina que atuava naquele palco. A competência e a desenvoltura com que se movia, quase fazendo desaparecer o varão, inibiam a concentração do meu entrevistado, a minha e, eventualmente, a do gravador. Fosse qual fosse a música, ela dançava-a com um aperto ao ritmo que simulava paixão aos olhos de quem a mirasse. Era, claro, um espetáculo – e não era preciso ser estreante, sóbrio ou miúdo para o perceber. A materialização da fantasia, se quisermos, não a tornava real ou verdadeira. E sem nenhuma intenção de ofensa, foi isso que me fez lembrar a ação política do dr. Costa, em particular nas suas matinées europeias.

São, há que dizê-lo, um autêntico show.

Desde que é Primeiro-Ministro, Costa, tal qual um bailarino, foi de apoiante do eurocético Syriza (à esquerda) a alinhado com o federalista Macron (ao centro), andando hoje em dia de braço dado com o autocrata Orbán (à direitíssima) contra as posições da Comissão Europeia e até do seu próprio Governo. Imagine-se, com misericórdia, o contorcionismo que paira naquela alma. Independentemente da banda sonora em reprodução, Costa dança o que houver, com quem estiver, para quem tiver de ser. Pelo caminho, quanto mais notas e gorjetas angariar, melhor. Habilidoso, que é provavelmente o adjetivo que mais vezes lhe atribuíram, talvez seja, no fim de contas, menos elogioso do que o antes presumido. As vestes vão saindo, as gorduras descaindo, os truques enjoando, a magia desvanecendo. O atual líder do Partido Socialista, que bate com o “ideal europeu” no peito cada vez que a corrente de ar lhe atinge a nudez, está há cinco anos a usar desaforadamente a Europa como arma de arremesso político. Colou-se a quem gritava por mudança quando esteve na oposição, agarrou-se a quem significava poder quando foi para o Governo e marimbou no Estado de Direito para negociar financiamento que o lá mantivesse. Com Costa, não há condições, há necessidades; não há aliados, há cúmplices. A mim, com franqueza, só me surpreende o tempo que demoraram a notar que as suas crenças possuem uma elasticidade digna de varão.

Citando o eurodeputado ecologista Phillipe Lamberts, “não se atiram princípios [democráticos] para debaixo do tapete em nome de dinheiro”. E foi exatamente isso que o Primeiro-Ministro português fez, ao dar a mão seu homólogo húngaro. Para Costa, a ideologia é um roupão de duplo forro em que até o avesso serve para ser mostrado. Como aqui escrevi nos idos do seu mandato, trata-se de um homem despido de convicções. E não se confia em alguém que não acredita em nada.

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