A linguagem é, como é óbvio, socialmente construída. Este facto, acarretando condicionalismos linguísticos aos indivíduos, permite a existência de um sistema de inteligibilidade e compreensão mútua, mas não obsta a que os elementos da língua sejam apropriados e usados autonomamente por cada indivíduo, algo pelo qual devemos sempre zelar.

Além disso, a linguagem, que é um produto da vida social, tem simultaneamente um papel na construção desta. Por um lado, um conceito é uma representação tipificada de um dado aspeto da realidade, rotulado com uma dada palavra. Por outro lado, as suas utilizações discursivas reforçam, em dados graus e direções, a materialização real desse mesmo aspeto, pelo que influenciam a realidade.

Isto significa que, se alguém controla os códigos de classificação das coisas, detém também um significativo poder sobre o que se passa na sociedade. No fundo, a imposição de um dado modo de linguagem e de dados símbolos e significados a um conjunto de indivíduos, através de processos de legitimação, traduz-se na imposição da cultura e da moralidade dos dominantes sobre os dominados – como poderão explicar, com perspetivas sociológicas próprias, autores como Pierre Bourdieu e Basil Bernstein (ao dissertarem sobre as desigualdades sociais) ou, ainda, Philip Corrigan e Derek Sayer (ao abordarem a regulação estatal sobre os cidadãos).

Partindo do princípio básico exposto, quando assisto à colocação de imposições por parte de uns à expressão e ao discurso de outros, parece-me prudente pensar que não só se esbate a liberdade linguística dos segundos, como também se estremece a sua capacidade de se afirmarem (para si mesmos e para o coletivo) enquanto pessoas singulares, que são atores sociais, com pensamentos e sentimentos próprios.

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Temos assistido a laivos que infligem pretensas boas práticas de comportamento linguístico, concretizados consecutivamente na esfera literária. Entre tantas outras notícias com lógicas semelhantes, tem sido badalado o assunto de que as novas edições britânicas dos livros infantis de Roald Dahl, escritor falecido em 1990, deixam de incluir palavras que foram consideradas ofensivas, assim como sofrem outra série de alterações.

Ora, quando a literatura, na qual deveria imperar a liberdade criativa, é vítima de determinadas prescrições externas que a limitam, isto é, sofre uma dada forma de censura, ainda que sob um véu benévolo (que até pode derivar de uma estratégia de marketing), devemos naturalmente temer aquilo que se passa. Se Roald Dahl escreveu que o personagem Augustus Gloop, do livro Charlie e a Fábrica de Chocolate, era “gordo”, é exatamente como “gordo” que ele deve ser entendido e não como “enorme”, como agora alguém que não o autor quer.

Agora substitui-se “gordo” por “enorme”. Quando os fiscais da moralidade linguística ou literária considerarem que a palavra “enorme” é um atentado, uma blasfémia, um ultraje a alguma coisa, passamos para uma nova substituição? No essencial, parece estar a abrir-se um precedente que ultraja, isso sim, a literatura como forma de arte.

Apraz-me, para concluir, citar Saramago: “Nem a arte nem a literatura têm de nos dar lições de moral. Somos nós que temos de nos salvar, e isso só é possível com uma postura de cidadania ética (…)”.