Se várias gerações desconhecem hoje a referência pop-cultural presente no título deste texto, tal é parcialmente devido à insensibilidade associada à decisão de terminar o mítico programa vespertino Agora Escolha. Aí, jovens expectantes, colados à “caixa que mudou o mundo”, ensaiavam, dia após dia, o exercício filosófico de resolução de dilemas éticos.

No entanto, mesmo com hiatos culturais entre si, há algo que todas as gerações partilham no actual momento nacional: a dificuldade em encontrar casa. Ou, vá lá, encontrar uma casa acessível, sem que para isso tenham que vender um ou mais órgãos internos no mercado negro.

Consciente disso, o Governo desencadeou uma ampla reforma legislativa que abrange, entre outras matérias, os licenciamentos do urbanismo, ordenamento do território e indústria. Integrada na lógica Simplex, pretende agilizar processos que conduzam a uma maior oferta habitacional e a um mais amplo acesso a habitação digna e adequada aos rendimentos dos agregados familiares.

Entra então em cena a proposta de lei n.º 77/XV, em que se incluem medidas para cada uma destas áreas administrativas, apontando à dinamização do sector da construção, estratégico para este tema.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Dentro dessas propostas, encontram-se algumas destinadas a abordar um mantra que entretanto foi ganhando, por força de militante repetição, embalo na opinião pública: a escassez de solos para edificação.

Vai daí, está em cima da mesa a criação de uma norma através da qual se admite a reclassificação do solo de rústico para urbano, fora da esfera dos planos territoriais, desde que sejam confinantes com solos já classificados como urbanos, e obedecendo a poucos e pouco exigentes critérios.

Para os mais tecnicistas, a ideia não pode desde logo deixar de ser estranha, uma vez que não se percebe muito bem como se foge ao princípio constitucional da reserva de plano, relativamente à ocupação do solo, que indica que a conciliação de interesses nesta matéria se trata através do sistema de gestão territorial, e não da iniciativa legislativa – e muito menos administrativa.

Mas os problemas de tal conceito, ainda que bem intencionado, não se esgotam nesse campo, porventura mais teórico e abstracto.

Em boa verdade, esta visão de reclassificação ad hoc de solos, para resposta imediatista – que não imediata – a um problema actual mas que não é isolado, levanta muitas outras questões.

Construir no séc. XXI não é – ou não deveria ser – apenas justapor edifícios. Nem sequer no Minecraft (ah, esta sim, já apanham!). Falar de habitação é também falar do espaço que acolhe essa edificação. Ou seja, é falar do tecido urbano que esta conforma, da paisagem em que se insere e, acima de tudo, da dignidade e qualidade de vida que irá proporcionar às populações que habitarão.

Por vezes pode não parecer, mas Portugal até tem um compromisso assumido, de papel passado e tudo, com a qualificação da Arquitectura e da Paisagem, através da sua Política Nacional de Arquitectura e Paisagem!

Assim sendo, e porque a edificação e a urbanização são actividades com elevado e duradouro impacto sobre a paisagem e sobre os seus sistemas fundamentais, que garantem a qualidade de vida e até a salvaguarda de pessoas e bens face ao risco associado a fenómenos naturais, importa apelar à responsabilidade, e lembrar que a pressa é inimiga da perfeição.

No entanto, o sentimento geral é mesmo de urgência, se não mesmo emergência! Já não é só quem casa que quer casa, é quem descasa, quem quer sair de casa, quem já não tem casa, quem precisa de mudar de casa. Neste contexto de aperto generalizado, é difícil falar de prudência.

O facto é que o país ostenta as cicatrizes de pressas semelhantes, que no passado precipitaram o país para excessos de voluntarismo, dos quais poderíamos facilmente destacar os booms de edificação dos anos 90 do século XX. Já aí, para resposta imediata à especulação (e não só) em torno das zonas mais centrais das urbes, com expansão das periferias para acolhimento de franjas populacionais com menor capacidade financeira no acompanhamento das escaladas de preços. O tecido urbano daí resultante, frequentemente desqualificado e insalubre, com problemas sociais e funcionais associados – com a mobilidade à cabeça, no encaixe dos movimentos pendulares – é capaz de ser um erro a não repetir. Quem disso duvidar, é só fazer as contas ao tempo perdido em deslocações.

Além do mais, a evolução demográfica portuguesa aconselha cautela na projecção do futuro da edificação, com os dados dos Censos de 2021 a apontarem para um decréscimo de cerca de 2,1% na população portuguesa face a 2011, e para um número superior a 723 mil fogos devolutos no país (equivalente a cerca de 15% do total edificado), de onde decorre o dichote popular: “tanta gente sem casa, tanta casa sem gente”.

Até porque, se pensarmos em solos destinados à edificação, já em 1998, a Direcção-Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano alertava que a concretização do planeamento à data ratificado pelo poder central originaria, no mínimo, habitação para 14 milhões de pessoas. No limite, todo o solo classificado como urbano e urbanizável nessa altura, acolheria uma população de 30 milhões de pessoas. Ora, neste momento, somos cerca de um terço dessa cifra…

É então, no mínimo, seguro dizer que, face à demografia e ao planeamento em vigor, não é assim tão certo que haja uma real escassez de solos para edificação em Portugal. Que a mesma seja complicada, no seu calvário burocrático, é outra história!

Outra ideia que carece também de alguma validação, é a de que a resposta do mercado imobiliário, face a uma maior agilidade e proliferação de nova habitação, dê respostas assim tão amigas da carteira dos portugueses – afinal o grande busílis. Não está assim demonstrado, em áreas onde efectivamente a construção progride, que o metro quadrado da nova edificação seja mais barato do que o metro quadrado da edificação consolidada, muito pelo contrário. Não é que a construção civil seja, ou deva ser, uma actividade filantrópica, ou que devam ser os particulares a assegurar políticas públicas… mas quem não quer ser santo, não lhe veste a pele, nem pede óbulos como tal.

Independentemente de tudo o resto, é inegável que deve ser dada alguma resposta administrativa à actual conjuntura.

Ainda assim, a proposta colocada em cima da mesa apresenta questões complicadas, que devem merecer uma mais apurada reflexão e debate entre todos os agentes do sector, e da sociedade em geral.

Logo à cabeça, o ordenamento do território e o urbanismo correspondem a exercícios de conciliação e ponderação de diferentes interesses e sectores que se articulam no desenho de um modelo territorial, ou seja, o desenho, no terreno, das políticas abstractas. Pensar a habitação desintegrada de outras dimensões da sociedade, tem tudo para correr mal, como quem tenta encaixar uma peça num puzzle, sem ver se o restante desenho bate.

Seguidamente, ver o solo como mera base de assentamento de caboucos é um erro crasso. O solo é um ecossistema, caracterizado por um intrincado conjunto de relações físicas e químicas complexas, entre factores bióticos e abióticos, que suporta a vida. Até que seja entendido como elemento fundamental ao equilíbrio e sustentabilidade, esta ideia de que é apenas espaço não edificado, que o betão e o tijolo abençoarão, atrasar-nos-á. O espaço rústico é tecido de produtividade primária e de protecção a funções ecológicas estruturais da paisagem, dotado de diferentes aptidões. Não o reconhecer perpetuará a especulação e o abandono, factores primordiais da sua degradação.

Mais ou menos pela mesma ordem de razões, os vazios urbanos não são apenas espaços expectantes até ao “momento redentor” que é a sua edificação. Desempenham um papel fundamental nas malhas urbanas, tanto ao nível ecológico (circulação de massas de ar, zonas de infiltração, entre outras funções) como ao nível psicológico, proporcionando desafogo dos volumes edificados – num tempo tão propício a enlouquecermos, não parece coisa de desprezar…

E, já agora, consagrar a conurbação e a expansão das malhas urbanas em mancha de óleo, como princípio orientador da ocupação do espaço e expansão das áreas urbanas representa um retrocesso de várias décadas em termos de políticas de ordenamento do território e urbanismo.

Ora, se é certo que o vintage está muito em voga, importa ter cuidado com os humores da moda. O conceito de expansão de um uso, neste caso o urbano, por contacto limítrofe, sem consideração da aptidão paisagística do território que o irá suportar, é prenúncio de ineficácia desse uso, quando não mesmo de risco.

Depois há ainda os perigos encerrados na simplificação excessiva do controlo prévio das operações que promovam a transformação urbanística do solo. Para além de desequilibrar a repartição da responsabilidade ente os vários agentes intervenientes em tais processos, podemos assistir a danos irreparáveis sobre o prestígio do poder local. Assumir que um termo de responsabilidade, sem prejuízo da qualidade – que é muita – dos profissionais do sector, é mais idóneo e credível que a intervenção e processos dos corpos técnicos e políticos dos Municípios, poderá representar um ónus gravoso sobre a confiança da opinião pública naquele que constitui um dos pilares da democracia de proximidade, conquistado no pós-25 de Abril. O papel dos Municípios e das associações profissionais é, naturalmente num quadro de rigorosa responsabilidade, transparência e equidade, fundamental para que o processo da edificação, desde a fase de projecto até à fase de obra, resulte em verdadeira urbanização, com qualificação e dignificação do tecido construído e da vida das comunidades que o habitam, em respeito e equilíbrio com os sistemas fundamentais da paisagem e os ciclos que através deles se processam, garantindo salubridade e segurança.

Talvez valha a pena pensar e discutir melhor tudo isto, antes de começar a construir uma casa pelo telhado…

Gonçalo Duarte Gomes escreve em desacordo ortográfico