Uma comissão parlamentar de inquérito sobre as designadas “rendas da energia” podia e devia ter sido realizada há muito tempo. Até a troika, com especial relevo para o FMI, se escandalizava com os CMEC (Contratos de Manutenção do Equilíbrio Contratual) que substituiu os CAE (Contratos de Aquisição de Energia). Mas nunca nenhum partido político, da esquerda à direita, se preocupou em ser consequente com as criticas que ia fazendo a esses contratos.

O Bloco de Esquerda foi, ao longo dos anos, o partido que mais alto falou sobre esse caso das rendas da energia – que nos fazem pagar caro a electricidade. Já podia ter pedido uma comissão parlamentar de inquérito há muito tempo e até tomado iniciativas legislativas que mudassem esse estado de coisas. Nunca o fez de forma eficaz. Podemos estar a ser injustos, mas querer agora uma comissão parlamentar de inquérito sobre as rendas da energia quando estamos perante suspeitas de um ministro ter recebido do BES dinheiro, quando era ministro, e perante uma acusação como a da Operação Marquês, que envolve um ex-primeiro-ministro, é falhar no essencial. A iniciativa do PSD, ainda que limitada, surge como muito mais focada no que é importante para a democracia.

Não que o caso das rendas da energia não seja importante e que, no limite, não tenha como responsáveis políticos Manuel Pinho e José Sócrates. Mas não é nesse processo que temos a maior ameaça à confiança dos cidadãos na política e nos políticos, pilares essenciais para acreditarmos na democracia. Uma comissão parlamentar de inquérito sobre esse tema é menos importante do que fazer todos os esforços para corrigir o que ainda se pode fazer nesse domínio.

A documentação que já existe sobre o caso das rendas da energia revela que as alterações substanciais foram feitas em 2007. A passagem dos CAE para os CMEC foi ditada por directivas europeias. O respectivo decreto-lei é de Dezembro de 2004 – com Pedro Santana Lopes como primeiro-ministro — mas é aplicado apenas em 2007 — já com José Sócrates como primeiro-ministro e Manuel Pinho ministro da Economia. Esse diploma entra em vigor com uma portaria com data de 20 de Julho de 2007 (Portaria 611) e com um decreto-lei com data de 31 de Maio (D-L 226-A/2007 que consagra as condições de extensão do domínio hídrico). E é nesta última legislação que se centra boa parte das dúvidas. Primeiro porque, contrariamente aos anteriores diplomas, não foi submetida à avaliação da Comissão Europeia no âmbito das ajudas de Estado. Em segundo lugar porque é este último pacote legislativo de 2007 que contém as regras consideradas como generosas para a EDP.

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Há uma vastíssima documentação sobre esta matéria que, com certeza, exige a avaliação de responsabilidades políticas mas que, à luz do que sabemos hoje sobre a Operação Marquês e sobre os recebimentos de Manuel Pinho, são um pequeno aspecto. Requer trabalho político, com certeza. Mas mais concentrado nas possibilidades de mudar a legislação do que numa comissão parlamentar de inquérito. Com esta iniciativa, o Bloco de Esquerda corre o risco de ser visto, por absurdo que pareça, como um partido que tenta limpar a imagem de Ricardo Salgado, de Manuel Pinho e de José Sócrates.

O que exige uma comissão parlamentar de inquérito ou, no mínimo, uma audição, ao que foram os anos de governação de José Sócrates e que têm não apenas o caso da anergia mas também a gestão da CGD, com os créditos que concedeu, e o negócio da falecida PT, para citar os casos mais conhecidos. O próprio PS não pode fingir que nada disto aconteceu com um Governo em que tinha a maioria absoluta e no qual foram ministros algumas das personalidades que hoje fazem parte da equipa de António Costa.

Manuel Pinho não pode ser o escudo para se evitar falar no que se passou na gestão governativa desses anos. Se tudo o que se passou na altura se resumir a Manuel Pinho ficamos com a ideia defendida por João Miguel Tavares em “Está aberta a época de tiro ao Pinho”. Os partidos não podem funcionar como associações que defendem os seus militantes, seja o que for que eles façam, muito menos quando se trata de um ex-primeiro-ministro. É por isso bem vinda, embora minimalista e inconsequente, a declaração de Carlos César quando diz que o PS se sente “envergonhado” com o caso Sócrates.

O Presidente da República tem antecipado os riscos que corremos com a acumulação de processos e casos envolvendo a classe política. O último alerta que fez, para os riscos de populismo, no discurso das comemorações do 25 de Abril, junta-se outros que são aqui enquadrados por Joana Ferreira da Costa.

Até às eleições do próximo ano continuaremos a assistir a sucessivas revelações de aproveitamento de cargos políticos para enriquecimento privado que, todos sabem, são perigosíssimos para a participação política dos cidadãos e que tornam tentadores os chamamentos populistas e autoritários. Aos casos gravíssimos que lemos na acusação Marquês e agora com Manuel Pinho descoberto no âmbito do caso EDP, juntam-se os outros como o aproveitamento de lacunas na lei para os deputados ganharem dinheiro com as viagens à Madeira e aos Açores através de um subsídio social que, como a designação “social” indica, se destina aos que ganham menos na sociedade.

Tudo o que a classe política puder fazer para mostrar que não perdoa a quem, militante ou não, retira benefícios privados de cargos públicos será pouco. Aquilo a que estamos a assistir é demasiado aterrador e corre o risco de abalar mesmo os que mais defendem a democracia. Vale mais prevenir do que remediar, como diz o Presidente que lhe disse um jovem. É preciso ser implacável com quem viola regras éticas e políticas básicas. O colapso do BES foi, como já alguém disse, a mais importante reforma estrutural da era da crise. Temos de saber tirar partido dela e fazer nascer daqui uma sociedade menos corrupta. Seremos mais felizes e menos expostos a riscos populistas e autoritários.