Todos sabemos há décadas que os relatórios sobre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) são realizados com a intervenção dos Estados-membros. Os temas são escolhidos por consenso e o texto é previamente visto pelo Estado-membro e debatido num comité onde estão representantes dos países. O que nunca se tinha visto em décadas de democracia é um Governo revelar que se opunha à forma como um tema é tratado e impedir – por acção ou omissão – a presença, na apresentação do relatório, da pessoa que dirige o departamento que o faz.

Aconteceu em Portugal nesta segunda-feira que passou, 18 de Fevereiro de 2019, dia em que o Economic Survey da OCDE sobre Portugal foi apresentado apenas pelo director-geral da Organização, Angel Gurría, ao lado do ministro Adjunto e da Economia, Pedro Siza Vieira. Assim como foi cancelada uma conferência agendada para terça-feira dia 19 e organizada pela Ordem dos Economistas onde deveria estar presente o economista que o Governo não quis.

O economista, que dirige o departamento que estuda os países na OCDE, e foi impedido de falar em Portugal, é português e chama-se Álvaro Santos Pereira. Noutras circunstâncias seria apresentado como mais um motivo de orgulho de ter Portugal representado nas organizações internacionais. Como se atreveu a falar de um tema que este Governo quer ignorar – a corrupção e o mau funcionamento da Justiça – passou a ser “persona non grata”.

Todo o processo começou por ser contado pelo Expresso  tendo depois desenvolvimentos, com o próprio secretário-geral da OCDE a assumir que pediu a Álvaro Santos Pereira para não vir a Portugal apresentar o relatório .  A razão fundamental desta guerra está no capítulo sobre a Justiça: o Governo não queria que se falasse em corrupção e muito menos dos casos que estão a ser investigados, a caminho do tribunal ou já julgados. O Governo, pelo que sabemos do que foi noticiado, conseguiu mudar o relatório mas não conseguiu que se eliminasse o sub-capítulo relativo à corrupção nem a própria palavra, como se pode ver aqui no relatório, na página 129. As mudanças em relação à versão preliminar podem ser lidas aqui no Observador.

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O que se propõe sobre estas matérias parecem ser medidas de senso comum, para todos os que considerem que é preciso prevenir e combater o crime de colarinho branco em geral e a corrupção em particular. Vejamos o que propõe concretamente a OCDE e, pelo que se sabe, com o acordo do Governo.

Defende que o Ministério Público e a Polícia Judiciária devem ter os “recursos adequados” para investigar os crimes e prevenir a corrupção. Considera que é preciso “reforçar a formação especializada de procuradores”, já que isso melhora o seu desempenho, designadamente nos “crimes económicos e financeiros que requerem conhecimentos específicos”. Alerta que Ministério Público precisa de recursos adequados para realizar investigações forenses, em geral longas e complexas, de crimes económicos e financeiros.

Não podemos acusar o Ministério Público de levar anos e anos a investigar um caso – veja-se o caso da EDP – e, ao mesmo tempo, não lhe dar recursos. E no caso português, de acordo com os dados que a OCDE apresenta, os recursos do Ministério Público são comparáveis aos de outros países, embora sejam significativamente mais baixos do que Estados onde a percepção de corrupção é mais baixa, como é a Holanda.

Um Governo que tivesse nas suas prioridades melhorar o funcionamento da Justiça e combater eficazmente a corrupção – já que só assim se podem mudar as percepções –  estaria a trabalhar sobre estas recomendações, a analisá-las e a avaliar a sua viabilidade de aplicação.  Para que, de uma vez por todas, se fechasse o ciclo que expôs um mundo de suspeitas, acusações e até condenações de ex-governantes e ex-gestores de topo de grandes empresas.

Somos um país onde um ex-ministro, que foi igualmente administrador da CGD e do BCP, está preso – falamos de Armando Vara. Somos um país onde um ex-primeiro-ministro – José Sócrates – está acusado de corrupção passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documentos e fraude fiscal qualificada. Neste mesmo processo, onde está também Armando Vara, encontram-se aquele que foi o mais importante e poderoso banqueiro do país, Ricardo salgado, e gestores de topo – Henrique Granadeiro e Zeinal Bava – de uma das maiores empresas portuguesas.

Paralelamente decorrem investigações que envolvem a EDP e um ex-ministro da Economia do governo de José Sócrates – Manuel Pinho. E foi através deste processo que se ficou a saber que Manuel Pinho esteve a receber mensalmente um rendimento do então BES liderado por Ricardo Salgado no tempo em que foi ministro.

Estes processos deveriam ser mais do que suficientes para um Governo estabelecer como uma das suas prioridades dar meios à Justiça para que as investigações se concluíssem o mais depressa possível e os julgamentos se fizessem. O arrastamento destes processos é mais um contributo para a degradação da confiança dos cidadãos nas pessoas que elegem e nos líderes das grandes empresas. Um regime não se auto-preserva sem se corrigir.

Em todo o “caso OCDE” podem ter existido responsabilidades das duas partes. O Governo porque não deveria ter intervindo como interveio. A OCDE porque não devia ter cedido. Mas o resultado final deste processo é mais uma ferida na confiança nas instituições, nos políticos e nos partidos. A negação dos problemas não os resolve.