A União Europeia vai ter de retirar consequências, com efeitos objetivos, depois daquilo a que estamos a assistir no já designado “Qatargate”. Embora estejamos todos ainda a olhar para este caso a quente e quando ainda não está terminado – segunda-feira as buscas continuavam – as pessoas e entidades envolvidas são um duro golpe para todos os que acreditam e defendem o projeto europeu, os sindicatos e as organizações não governamentais.

O que se sabe até agora é que uma das vice-presidentes do Parlamento Europeu, Eva Kaili, foi detida, suspeita de, simplificadamente, receber presentes e dinheiro do Qatar para defender esse país, como aliás o fez, chegando ao ponto de afirmar que estavam na liderança da legislação laboral e eram uma inspiração para o mundo árabe. O Qatar desmente.

Além de Eva Kaili, também está envolvido o seu companheiro Francesco Giorgi, fundador da Organização Não Governamental (ONG) “Fight Impunity” e assessor do Parlamento Europeu para assuntos do Médio Oriente e África. O grupo integra ainda o ex-eurodeputado Pier Antonio Panzeri e presidente da “Fight Impunitity”. Uma outra ONG, “No Peace Without Justice”, também aparece através do seu diretor-geral Niccolò Figà-Talamanca, com as duas a terem a mesma morada, como se pode ler no Político. Membros honorários estão a abandonar a ONG, incluindo a eurodeputada do PS Isabel Santos.

E como se não fosse suficiente, também está sob suspeita o secretário geral da Confederação da União Internacional de Sindicatos, ex-líder da Confederação Europeia de Sindicatos, Luca Visentini.

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Esta segunda-feira já tinham sido realizadas 20 buscas, entre habitações, escritórios e gabinetes do Parlamento Europeu e, de acordo com o Financial Times, desde sexta-feira foram apreendidos cerca de um milhão de euros em dinheiro vivo.

E não sabemos se vai ficar por aqui. Esta segunda-feira, em Bruxelas, a presidente da Comissão Europeia foi questionada sobre a possibilidade de o seu vice-presidente, o comissário grego Margaritis Schinas, estar também relacionado com o caso, e recusou-se a responder. A comissária Schinas também elogiou as reformas laborais do Qatar.

Tudo aquilo a que estamos a assistir reúne condições para agravar ainda mais a confiança nas instituições políticas, sindicais e da sociedade civil. Parece que nada se salva. Mas há o lado luminoso do que se passou: nas democracias, nos estados de Direito, a corrupção tem formas de ser combatida e, se a justiça funcionar como se espera, serão julgados de forma justa e haverá uma sentença. Além disso, o próprio Parlamento Europeu actuou rapidamente com a expulsão dos detidos.

Já é positivo a polícia belga ter investigado e actuado – mesmo que o cinismo de alguns diga que há muito se sabia que existia um problema no Parlamento Europeu e que só se actuou desta vez porque o problema era demasiado visível. Já é, também, pelo menos parcialmente positivo, começarem a desencadear-se iniciativas para que os eurodeputados sejam melhor escrutinados. Porque, por muito revoltada que a esmagadora maioria dos eurodeputados esteja, por muito fortes que possam ser as palavras, vai ser preciso acção e a reconquista do coração dos europeus da União. Desta vez soubemos que a corrupção falhou, mas isto abriu um espaço para suspeitas.

A presidente do Parlamento Europeu teve um discurso bastante forte ao dizer que os inimigos da democracia, “ligados a países terceiros autocráticos utilizaram ONG, sindicatos, indivíduos, assistentes e membros do Parlamento Europeu num esforço para interferir com os nossos processos” e falharam. “A União Europeia não está à venda”, disse. O problema é que agora tem de mostrar isso.

A fragilidade a que a UE se expôs é violentamente ilustrada no gozo do primeiro-ministro húngaro Viktor Orbáns num tuíte. O eurodeputado Guy Verhofstadt pôs o dedo na ferida dizendo obviamente que o “Parlamento Europeu vai adotar medidas imediatas” – como tomou – “suspendendo, investigando e punindo os responsáveis enquanto” o primeiro-ministro húngaro “tem bloqueado todos os esforços de combate à corrupção”. De facto, o Parlamento actuou rapidamente, suspendendo os envolvidos, seguindo-se agora a investigação. Mas terão de ir mais longe, acabando de vez com a “cultura de impunidade” identificada pelo presidente da Transparência Internacional Michiel van Hulten. Os eurodeputados têm de ser escrutinados por um órgão independente e precisam de um código de conduta mais estrito.

Embora este não seja o primeiro caso – houve outros, nomeadamente um denunciado pelo Sunday Times em 2011, com um jornalista que se passou por lobista, e citado pelo Financial Times –, este envolve tantas instituições que é aterrador.

As instituições europeias precisam de uma profunda reforma. Infelizmente, face aos problemas que enfrentamos, esta não é a melhor altura para a fazer. Mas algumas medidas urgentes têm de ser tomadas ou corremos sérios riscos de ver os cidadãos a abandonarem o seu apoio.

No meio deste escândalo há, no entanto, alguns pontos positivos e com os quais Portugal deve aprender. Primeiro, e como já referido, foi ter-se investigado. Em segundo lugar, mas não menos importante, e é para isto que o Governo português deve olhar, temos a reacção muito rápida do Parlamento Europeu e do próprio partido socialista grego, o PASOK, ao qual pertencia Eva Kaili, expulsando a eurodeputada. Ninguém ficou à espera da decisão da justiça. Há comportamentos que mesmo que a justiça não venha a condenar, são eticamente reprováveis. E isso é uma lição para o Governo português e para o PS, que tem de aprender a lidar com o que designa como “casos e casinhos” de uma forma ética.