Têm sido muitas as críticas à forma como Marcelo Rebelo de Sousa exerce o seu mandato. Até eu tenho feito algumas. Sobretudo pelo seu estilo, que alguns consideram excessivamente populista, e pela falta de reserva institucional. Em geral Marcelo é criticado por falar de mais, embora a imprensa nunca se canse de o ouvir. Não são críticas que algumas vez tenham sido feitas a Isabel II. Carlos III prometeu seguir o seu exemplo. Marcelo estará na coroação do monarca britânico este sábado, duvido que peça conselhos. Será que devia? Ele fará parte dos mais de 100 Chefes de Estado presentes, uma novidade nesta velha cerimónia. O governo britânico decidiu aproveitar ao máximo a atração no exterior desta velha monarquia, tirando partido do poder suave da coroa, do soft power dum certo snobismo universal. Serão milhões a assistir a este antigo ritual pela televisão por todo o Mundo. Alguém acredita que existiria o mesmo interesse pela posse dum presidente britânico? Esta parece, portanto, ser uma boa altura para escrutinar os paradoxos de monarquias e repúblicas, tendo como pressuposto de base da minha parte que não existem regimes perfeitos.

Relíquias e paradoxos

As 43 monarquias que restam num Mundo de 195 Estados – 22% do total – são sobreviventes. Desde o surgimento dos primeiros Estados, há uns 6000 anos, e durante milhares de anos até ao século XX, a grande maioria dos Estados foram monarquias. Era natural em sociedades em que, por regra, os filhos herdavam o património, estatuto e ocupação dos pais. Nos últimos dois séculos, na maioria dos países do Mundo, passou-se a herdar “apenas” o património. Durante o século XIX, na Europa, só existia uma república com dimensões significativas, a Suíça, a que se somou, em 1870, a França, e em 1910, Portugal. Hoje em dia existem 12 monarquias na Europa. Como chegámos aqui? Revoluções, raros referendos e muitas guerras. Na Europa as duas grandes vagas de abolições de monarquias sugiram no final da Primeira e da Segunda Guerra Mundial. Fora da Europa as maiores vagas de abolição de monarquias resultaram da colonização e da descolonização – que derrotou e extinguiu muitas monarquias nativas, cooptou e descredibilizou outras. Por regra, na descolonização optou-se por manter as fronteiras coloniais e não restaurar antigos Estados nativos. Curiosamente, algumas monarquias sobrevivem no interior destas novas repúblicas, do reino zulu, na África do Sul, até ao sultanato de Sokoto, na Nigéria.

Livres de reis e senhores

Desta vaga republicana não resultou uma magnífica expansão da liberdade? Nenhum historiador ou cientista político pode, com rigor, fazer equivaler república e liberdade, monarquia e opressão. Há monarquias para todos os gostos, geralmente acompanhando o regime dominante na respetiva região. A Arábia Saudita é um dos raros exemplos de um regime absolutista de direito divino. Mas isso não resulta duma tradição longínqua. O estado saudita é recente, fundado em 1932, como resultado das conquistas de Ibn Saud, aproveitando o vazio de poder criado pela derrota otomana na Primeira Guerra Mundial. Também convém recordar que este petroestado praticamente dispensa a taxação portanto, pode dar-se ao luxo de dispensar a representação parlamentar, até ver. Já a maioria das monarquias na Europa são velhos regimes constitucionais e democracias parlamentares. Na verdade, os regimes constitucionais, as democracias pluralistas mais antigas da Europa são monarquias, começando pela Grã-Bretanha.

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Os paradoxos não acabam aqui. Quais são os regimes mais propensos a golpes de estado e regimes autoritários? São repúblicas, em particular as presidencialistas. Quais foram os regimes mais violentamente repressivos de toda a história, provocando milhões de mortos entre a própria população? Repúblicas como a Alemanha nazi, a União Soviética ou a China comunista.

A história da Grã-Bretanha é um bom exemplo de que fazer equivaler monarquia e opressão, república e liberdade é, no mínimo, simplista. Um trauma central na cultura política britânica são as guerras civis de meados do século XVII, e, como resultado delas, o derrube da monarquia entre 1649-1660. Qual foi o resultado? A tomada do poder por um ditador militar, o general republicano vitorioso, Oliver Cromwell, e a dissolução forçada do parlamento. Por isso, desde 1688, os ingleses consolidaram um regime híbrido como a melhor forma de garantir as liberdades numa monarquia constitucional: “the crown in parliament”. Afinal numa democracia nem todos os órgãos de soberania têm de ser diretamente eleitos pelo povo, veja-se, por exemplo, os juízes, ou até, os presidentes de repúblicas tão relevantes como a Itália ou a Alemanha.

Haverá quem pense que as monarquias podem até ser garantias de continuidade e moderação, mas serão fortes bloqueios ao progresso. No entanto, se olharmos para mais um indicador objetivo, o índice de desenvolvimento humano, no top 10 de países com melhores condições de vida no planeta em 2022, cinco são monarquias, e na lista dos 10 mais atrasados nesse campo, todos são repúblicas. Também aqui não podemos simplificar.

A monarquia é a solução?

As restaurações de monarquias têm sido raras. Quebrada a magia da continuidade, ela é difícil de recuperar. A última foi no Camboja, em 1993, como parte do processo de paz. Mas talvez os mais críticos de Marcelo devam pensar no assunto. Afinal, o presidente foi eleito e reeleito com amplas maiorias com base no seu estilo de fazer política. Marcelo tem legitimidade eleitoral e constitucional para exercer como entender o seu mandato, podemos criticar, mas no nosso regime semipresidencialista ele tem uma legitimidade própria.

Não estaremos a ser demasiado monárquicos nas nossas exigências de decoro, de reserva, de comportamento institucional de Marcelo, um chefe de estado eleito pelo povo? Estou com isto a recomendar seriamente a restauração da monarquia em Portugal? Não. Desde logo porque, para essa opção ser viável, precisaria reunir um amplo consenso nacional. O que nos remete para o paradoxo central das monarquias europeias de hoje.

Reis pela vontade do povo

Carlos III e os outros monarcas europeus só continuam a ser chefes de Estados democráticos porque essa é a vontade do povo. Carlos III será aclamado, juramentado, ungido, investido, coroado, entronizado e homenageado no próximo sábado 6 de maio, se tudo correr de acordo com o ritual tradicional. Todas as tradições foram inventadas, mas a coroação dos reis ingleses é das que reúne rituais mais antigos. Partes da cerimónia estão documentadas na coroação do rei Edgar, em 973. Tudo isto irá acontecer, no entanto, por vontade do povo, dos parlamentares, dos líderes políticos britânicos.

Por enquanto, apesar de Carlos III ser menos popular que Isabel II ou até que o Príncipe Guilherme, a maioria da população britânica continua a preferir a monarquia (62%) à república (25%). E é isso que explica que não haja um referendo sobre o assunto, e que nenhum dos grandes partidos britânicos defenda a república. Com a exceção, claro, do Sinn Fién na Irlanda do Norte, que, no entanto, tem moderado a sua hostilidade à coroa, à medida que se aproxima do poder. Pela primeira vez até se fará representar na coroação de Carlos III.

É certo, porém, que, desde 2020, pela primeira vez uma maioria da população mais jovem, entre os 18-24, prefere a república (40%) à monarquia (36%). Este é um desafio importante para Carlos III, se quiser evitar ser o último rei da Grã-Bretanha e dos seus outros 14 reinos espalhados pelo Mundo. Aí, sobretudo nas Caraíbas, a tarefa de vencer o referendo quotidiano à monarquia, e até um possível referendo formal, será mais difícil. Apesar de tudo Carlos III continua a ser Head of the Commonwealth, uma comunidade de 56 Estados, a maioria antigas colónias britânicas. Veremos quem deixará melhor legado, o britânico Carlos III ou o nosso Marcelo I.