Um debate que tem ocupado os académicos e os intelectuais do mundo ocidental está relacionado com um possível paralelo entre a Guerra Fria, que opôs os Estados Unidos e a União Soviética, e o recente conflito de transição do poder entre os EUA e a China. A razão pela qual este debate tem cabimento é que, com a distinção feita por Joe Biden entre democracias e autocracias (e o alinhamento das democracias asiáticas com a potência democrática do outro lado do Pacífico) e com a aproximação da Rússia à China, parecem estar a formar-se dois blocos distintos, indiciando que o sistema internacional poderá vir a ser o de uma competição bipolar.
Já afirmei várias vezes que me parece que a História não se repete e há certamente muitas diferenças entre os dois momentos. Desde logo, a China e a União Soviética são adversários acentuadamente diferentes na sua natureza e na forma de fazer política externa; os rivais de hoje não saem de um cenário de guerra clarificador do peso de cada um no sistema internacional e não houve paz negociada que indique o ponto de partida para o futuro; e há outros Estados, como a Rússia e, eventualmente, a Índia, que terão uma palavra a acrescentar neste sistema. A evolução de outros atores para além dos EUA e da China e as escolhas que vierem a fazer poderão condicionar a rivalidade central dos dias de hoje.
Mas também há “traços comuns”, como diz Carlos Gaspar no seu livro O Regresso da Anarquia, publicado no final do ano passado. Enumera três: o padrão histórico de confronto entre a principal potência marítima e a principal potência continental; a ameaça latente da China aos aliados norte-americanos na Ásia, a linha defensiva traçada por Washington; e há, igualmente, uma tensão ideológica, relacionada com o carácter democrático dos Estados Unidos e a natureza autocrática da China.
Acrescentaria mais uma semelhança, a que, porventura, pode ser crucial. Olhando a história da Guerra Fria do ponto de vista do presente, é lícito pôr a hipótese de que se tenha tratado da primeira guerra de transição de poder pós-advento do armamento nuclear. De forma muito simplificada, as guerras de transição de poder resultam do declínio da(s) potência(s) dominante(s) e da ascensão de potências tendencialmente revisionistas que disputam o domínio internacional e o direito de criar regras de conduta entre os Estados – a chamada ordem internacional. Antes das armas nucleares, estes momentos de tensão, regra geral, acabavam com “guerras hegemónicas” (que envolviam todos os Estados poderosos). Agora foram substituídas por “guerras de desgaste”.
A Guerra Fria terá sido a primeira. Afinal, falamos de duas potências com projetos internacionais antagónicos e em permanente conflito político-militar, que só poderia ter um desfecho: a derrota de um dos rivais.
Na história da Guerra Fria não há indícios de que alguma vez as potências se quiseram, verdadeiramente, entender. Há momentos de elevada tensão, há momentos de aproximação, há momentos de perceção de declinismo de um lado e de outro (do lado soviético sabemos agora), mas nunca há, a não ser nas vésperas do colapso soviético, qualquer tentativa de estabelecer a paz. Como se nenhuma das potências estivesse disposta a que a outra dominasse o mundo ou implementasse as suas normas no sistema internacional. Ambas tinham vontade política de manter o conflito até às últimas consequências.
Isto explica também porque é que a teoria não conseguiu prever o colapso soviético. Sendo a guerra total impossível e o modelo bipolar uma anomalia, os exemplos históricos de conflito entre grandes potências foram afastados e a dedução teórica tomou conta das explicações da Guerra Fria: pensou-se no antagonismo ideológico, no expansionismo de ambos os lados, no equilíbrio de poder que a bipolaridade tinha trazido ao sistema internacional (com o habitual menosprezo pela paz e prosperidade do então chamado “Terceiro Mundo”). Nunca ninguém perguntou porque é que não era possível os Estados Unidos e a União Soviética negociarem a paz e construírem uma ordem internacional de convivência pacífica. Nunca houve a tentativa de explicar o conflito fazendo uso das teorias da transição de poder, que explicariam muito mais facilmente porque é que nenhum dos Estados podia – ou queria – deixar de competir pela sua sobrevivência enquanto potência no sistema internacional.
Se esta hipótese estiver correta, então a maior semelhança entre o conflito bipolar do século XX e o que se iniciou nos últimos anos é exatamente esta: estamos perante guerras de transição de poder onde não há possibilidade de aniquilação de uma das partes sem aniquilação do mundo. Se assim for, esperam-nos décadas de uma “guerra de desgaste”. Com conflitos armados pontuais, com a “guerra comercial” a escalar para a tentativa de controlo da ordem económica, com uma contenda pelo modelo de ordem internacional, com ataques híbridos e tentativas de desestabilização de alianças, com uma corrida à tecnologia mutuamente exclusiva, com os Estados a formarem blocos com a intenção de enfraquecer o adversário.
Na verdade, todos estes elementos já fazem parte do mundo em que vivemos. Ficam, pois, dois avisos: esta transição de poder tem tudo para ser longa. Como foi a anterior. A “guerra de desgaste” substituiu a “guerra hegemónica”. E a neutralidade perante este cenário é quase impossível. Não só porque não pertencer a um bloco poderá significar o isolamento internacional de um Estado, ou entidade, sem meios de defesa, como a questão tecnológica – da qual todos dependemos –, mas da forma que está a ser configurada, exige escolhas. Saibam os Estados europeus, que com o Brexit perderam a sua mais forte ligação aos Estados Unidos, fazer a escolha certa.