1 Uma das facetas da forma habilidosa como António Costa gere o seu Governo é o novo grau de desresponsabilização política que o primeiro-ministro inventou desde 2015. A começar pelo próprio Costa — que nunca tem responsabilidade por nada — e a acabar nos seus ministros — que só são culpados de alguma coisa quando não há mesmo mais ninguém para responsabilizar. Liderar pelo exemplo e pela capacidade de assumir as consequências inerentes à liderança não é matéria que assista o Governo Costa.
Se falarmos de Eduardo Cabrita, temos mesmo de constatar que o verbo “responsabilizar” não faz parte do dicionário de António Costa. Não só porque se trata de um amigo pessoal seu — uma característica louvável na vida privada de cada um mas certamente censurável na vida pública porque indicia um favorecimento pessoal — mas também porque os casos em que Cabrita já esteve envolvido desde 2017 são tantos, tantos, tantos, tantos, e tantos que o ministro da Administração Interna só não sai do Governo por ser inimputável politicamente.
A Eduardo Cabrita tudo é admitido. Ao ministro da Administração Interna tudo é permitido por António Costa.
2 O grande problema de Costa e de Cabrita é que os factos são sempre mais fortes do que os seus desejos. Veja-se o caso dos festejos do Sporting, por exemplo. Pela primeira vez, existem indícios factuais que fazem uma ligação direta entre tais festejos e uma subida da incidência na cidade de Lisboa — o que faz com que a capital esteja em risco iminente de ultrapassar os 120 casos por cada 100 mil habitantes e seja obrigada a recuar no plano de confinamento.
E não, isto não é um exercício de especulação jornalística. Quem é o diz são três dos maiores especialistas nacionais:
- Óscar Felgueiras, epidemiologista da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e conselheiro do Governo, afirmou na última sexta-feira que “é legítimo pensar que há uma associação [do aumento de casos] com os festejos” do Sporting. “Em rigor não é fácil explicá-lo de outra forma”.
- Manuel Carmo Gomes é mais moderado mas falou ao Público numa “forte plausibilidade” de que os festejos dos sportinguistas estejam relacionados
- Carlos Antunes diz que a incidência no concelho de Lisboa está a aumentar a um ritmo de 3,2% e que a duplicação de casos verifica-se a cada 22 dias. Resultado? Podemos estar perante um “crescimento exponencial”. Porquê? Porque a incidência em Lisboa já é de 118 — ligeiramente abaixo do limite dos 120 casos por cada 100 mil habitantes —, sendo que na faixa dos 20-29 anos já é de 152 casos.
Já o relatório sobre as linhas vermelhas do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge acrescenta que, a “manter estas taxas de crescimento, o limiar de 120 novos casos por 100 mil habitantes, acumulado em 14 dias, será atingido em 61 a 120 dias, a nível nacional, e 31 e 60 dias, na região de Lisboa e Vale do Tejo.”
Este domingo, a DGS informou que apenas foram 20 novos associados aos festejos do Sporting mas, apesar da explicação “multifatorial” do aumento da incidência, a própria autoridade de saúde não exclui a hipótese de mais novos casos surgirem nas testagem em massa que o secretário de Estado Lacerda Sales já anunciou para as freguesias mais afetadas.
Resumindo e concluindo: se ultrapassar o limite de 120 casos por cada 100 mil habitantes, a cidade de Lisboa pode ter de recuar no plano de desconfinamento. Com todas as consequências económicas e sociais que isso acarreta — e ainda por cima quando o país abriu finalmente as portas das suas fronteiras a turistas.
3 Aqui chegados, temos de recordar a incompetência, as omissões e irresponsabilidade com que o plano de festejos do Sporting no dia 12 de maio foi tratado pelas autoridades. Pura e simplesmente, o Ministério da Administração Interna e a Polícia de Segurança Pública não conseguiram antecipar e agir em tempo útil quando o evento dos festejos era mais do que óbvio uma semana antes dos mesmos acontecerem.
Foi tudo mau ou péssimo: desde ajuntamentos de milhares de pessoas na rotunda do Marquês, nas imediações do Estádio de Alvalade e ao longo de todo o percurso do autocarro, violência, etc. E tudo sem que nenhum responsável político, polícia ou a autoridade de Saúde tivessem feito um apelo para que os festejos fossem contidos devido à pandemia.
O mais relevante, contudo, é uma história ainda muito mal explicada sobre a oposição da PSP ao desfile do autocarro do Sporting pelas ruas de Lisboa. A direção nacional da PSP terá solicitado a intervenção política do Ministério da Administração Interna mas nada lhe foi dito.
Mas nem o ministro Eduardo Cabrita, nem a diretora-geral de Saúde Graça Feiras nem qualquer responsável do Governo teve o cuidado apelar de forma atempada aos sportinguistas para que respeitassem as regras de combate à crise pandémica.
Se as explicações que Fernando Medina sobres este tema são ridículas, o silêncio de Eduardo Cabrita é verdadeiramente ensurdecedor.
Pior: Cabrita, que nunca falou sobre o tema dos festejos do Sporting, ainda fez questão de elogiar este domingo as zero mortes que Portugal teve nos dois últimos dias, falar num “horizonte de esperança” e ignorar olimpicamente o facto do concelho de Lisboa estar à beira de entrar no vermelho, ultrapassando os 120 casos por cada 100 mil habitantes.
4O Financial Times perguntou este sábado em editorial: “Será que desonestidade política importa para os eleitores?” Dizia aquele prestigiado jornal económico inglês que o Governo dos conservadores estava a utilizar os resultados positivos das últimas eleições locais no Reino Unido — na sequência das quais se demitiu o líder dos trabalhistas — para argumentar que o eleitores não ligavam aos diversos casos que têm marcado a governação de Boris Johnson.
Uma tentação normal, tendo em conta Boris ganhou confortavelmente as eleições de dezembro de 2010 e que as consequências dos casos tardam em acontecer. “(…) pode ser um receio distante. Mas os efeitos corrosivos não podem ser subestimados mesmo que tardem em concretizar-se. É por isso que os ministros não devem acreditar na sua própria retórica (…). Quanto menos o governo acreditar que sua conduta será escrutinada, menos cauteloso será. Num Governo já muito descuidado com as regras, isso não é do seu interesse a longo prazo.”
O problema de Eduardo Cabrita é precisamente esse: por muito que a sua conduta seja escrutinada, cautela foi algo que o ministro da Administração Interna já se esqueceu há muito.
Resta saber se António Costa está realmente preocupado com os “efeitos corrosivos” que a manutenção de Eduardo Cabrita no Governo acarreta para a imagem do seu Governo e, acima de tudo, para si, enquanto primeiro-ministro.
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