Já depois da decisão do Tribunal Constitucional a mandar repetir as eleições no circulo da Europa, Paulo Ferreira e Júlio Magalhães tiveram no “Explicador” do Observador os cabeças de lista do PS, Paulo Pisco, e do PSD, Ester Vargas. E é extraordinário como o candidato socialista insistia implicitamente na violação da lei, por via de um acordo entre o PS e o PSD, para argumentar contra a sua opositora. Os sociais-democratas até podem ter dado o dito por não dito, em matéria de contagem de votos de quem não enviou o documento de identificação. Mas é extraordinário como se desvaloriza o mais importante e grave: ter passado pela cabeça fazer um acordo entre os dois partidos, no sentido de contar os votos sem identificação, em clara violação da lei, como explicou aliás o Tribunal Constitucional. É assim que entendem o que é um Estado de Direito? É assim que entendem o que é uma Democracia? Um cozinhado entre dois partidos sem respeito pela lei?
Aquilo a que assistimos em todas as suas vertentes, incluindo as intervenções e o papel do Presidente da República, recomendam que tenhamos medo, muito medo, do que parece ser a interpretação que os dois maiores partidos do regime fazem dos seus poderes. Um medo que é agora ainda mais justificado quando o PS vai estar a governar durante mais de dois anos em maioria absoluta. Enfrentamos um sério risco de vivermos condicionados – não se quer exagerar – pelos “novos donos disto tudo” que nem na lei veem os seus limites. Não tem sido de facto um acaso a descida de Portugal no ranking do índice de Democracia da “Economist Intelligence” recentemente divulgado. E é por isso que vale a pena revisitar o sistema eleitoral.
O caso dos emigrantes e o número de votos necessário para eleger cada deputado por distritos expuseram fragilidades preocupantes e que foram passando despercebidas ao longo dos anos.
Verificamos de forma dramática que os deputados, uma vez eleitos, ignoram se não mesmo desprezam, quem os elegeu. Só assim se compreende que os eleitos pelo círculo da Europa em 2019, detectado que foi o problema já na altura – quase 25% dos votos foram anulados –, tenham ignorado completamente a situação e nada tenham feito para encontrarem uma solução. Foram eles Paulo Pisco do PS, e Carlos Gonçalves do PSD. Mas também cada um de nós, em território nacional, vive o mesmo problema. Os candidatos aparecem nas eleições e depois ignoram os eleitores.
Some-se a isso o facto de a lei eleitoral ter um enviesamento que favorece as zonas urbanas. Um partido racional deveria concentrar todas as suas energias nas zonas onde é mais fácil eleger. Um dos partidos que é mais beneficiado com este sistema é o Bloco de Esquerda e, a prazo, poderá ser o Iniciativa Liberal. E nestas eleições de 2022 um dos beneficiados foi o Livre enquanto o grande prejudicado foi o CDS. Restam duas situações em que é racional apostar nos distritos mais despovoados: uma é a dos grandes partidos, outra é a de partidos como o Chega que vão buscar os eleitores zangados, resultado em parte desta discriminação negativa de que são vítimas, também, por via da lei eleitoral.
Este sistema eleitoral está longe de ser neutro em termos económicos. Os partidos e o Governo tendem a beneficiar aqueles que lhes dão os votos. Se os votos estão nas zonas urbanas, obviamente que as políticas e os investimentos dirigem-se para aí. O agravamento da desigualdade territorial pode não ser apenas explicada pela lei eleitoral, mas o certo é que ela não tem os incentivos certos para promover a coesão territorial e um desenvolvimento harmonioso. É assim que o interior vai ficando sem educação, saúde, transportes. Quem ganha votos em investir nessas regiões?
O Chega pode ser o desbloqueador desta situação, dentro do mesmo sistema eleitoral, caso os dois grandes partidos comecem a olhar para as razões que levam este partido a ter tanto sucesso nas zonas menos urbanas. Mas mais do que isso, valia a pena pensar seriamente em corrigir a lei eleitoral para que os votos dos portugueses, em território nacional e no estrangeiro, tivessem o mesmo valor. E, acima de tudo, que o sistema eleitoral deixasse de ser, também, um factor de promoção da desertificação do país.
Em breve vamos ter a Regionalização na agenda. Um erro que hoje não se vai desenvolver aqui, mas que corre o risco de se resumir em mais jobs for the boys, mais areia na engrenagem das decisões do Estado e ainda menos democracia e desenvolvimento. Reforçar a relação entre os deputados eleitos e os eleitores, com mais responsabilização, e dar aos eleitores do interior um peso igual ao dos seus concidadãos das grandes cidades pode fazer mais pela coesão do território do que a Regionalização. Pode não ser perfeito, mas certamente os deputados eleitos pelo círculo da Europa ter-se-iam preocupado mais em resolver os problemas dos seus eleitores em vez de se comportarem como donos disto tudo não respeitando a lei.