Quem melhor do que alguém que tem, muitas vezes, feito por mostrar o lado menos benemérito da Enfermagem para vir fazer, agora que é mais necessário do que nunca, a apologia dos enfermeiros? Não, este texto não foi encomendado. Sim, continuo a achar que os enfermeiros não estão a conseguir lidar bem com a situação da greve. Mas, na verdade, não consigo concordar com muitos dos ataques, injustos, de que eles têm sido alvo. E já custa lidar com tamanha ignorância da população. Está, então, na hora de dar a outra face. Faço-o, claro, como fisioterapeuta e escritor que sou.

Chegámos ao séc. XXI e as pessoas ainda pensam que um médico tem de ser necessariamente mais importante do que um enfermeiro ou que um enfermeiro não passa de um “pseudo-médico” frustrado. Tomara que todas as “frustrações” fossem assim, deste modo de dar o corpo ao manifesto para que o corpo do “outro” possa prevalecer. A Enfermagem não é, genuinamente, a sombra da medicina, e se ela muitas vezes não consegue responder às prementes necessidades, isso acusa mais a falência do sistema do que da primeira. Porque um Sistema que ilude os cidadãos com cuidados de saúde que não prodigalizam os seus profissionais e as suas aptidões é, bem vendo, a grande “pedra no caminho” que, decididamente, convida muitos a abraçar o “privado”. Não que o “privado” seja perfeito, mesmo aqui o Sistema não permite fazer o “melhor” que os enfermeiros são, deveras, capazes de fazer.

E, no entanto, é para o “privado” que muitos profissionais de saúde fogem, quando vêem as suas capacidades serem subestimadas. Mas isto implica um risco que nem todos podem comportar. Ademais, há recursos de que os enfermeiros dependem, eles não conseguem, frequentemente, ter o mesmo grau de independência prática do que, por exemplo, um terapeuta. Mas, afinal de contas, que consegue ver o enfermeiro que muitos médicos não conseguem (ou não querem/têm tempo para/ conseguir)? O corpo na sua integralidade, na sua mundividência, na sua transformação constante. Transmutação na qual operam os próprios enfermeiros enquanto “artífices”, ligando o “físico” ao “mental” e estes ao “espiritual” e “sistémico”. O enfermeiro configura o modelo perfeito de profissional basilar, capaz de cruzar recursos, valências, e até de gerir actividades interdisciplinares. Pois é ele que está lá numa parte significativa de tempo, é ele que pode, mais do que qualquer outro, perceber o corpo nos termos do “longitudinal”, da temporaneidade (Heidegger). Ele tem a formação e a sensibilidade para isso. E o tempo (?)… obviamente cada vez mais curto à medida que o Sistema se desintegra.

O prescricionismo médico é, bastas vezes, incapaz de compreender esta dinâmica. E que a experiência faz de muitos enfermeiros verdadeiros “nadadores-salvadores”. O que não impede que surjam ondas gigantes. Dirão, vocês, que os médicos são tal-qualmente vítimas do Sistema. Não digo que não. Mas há mais na Enfermagem, há modelos vários que preparam o “devir” do paciente, há uma “paciência” diferente, que só se esgota quando dezenas de pedidos simultâneos vêm infernizar o profissionalismo.

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O “corpo” não pode continuar a ser visto como uma coisa “estática”. O Sistema opta por esta visão, por ignorância, mas também porque o sentido dos serviços é mais o do “desenrasque” para o “curto prazo”, na base de um paradigma redutoramente mecânico. As pessoas são forçadas a procurar a qualidade no “privado”, quando o Serviço Nacional de Saúde serve a aparência de um Estado-providência que pouco previdencia. Para o público, fica, às tantas, a resultante do enfermeiro “piloto automático”, e num avião cheio de passageiros prestes a cair no oceano.

Logicamente, cria-se a ilusão de que as exigências dos enfermeiros são descabidas, de que o enfermeiro não tem de ser pago “como o médico”, mas é que, no estado actual das coisas, nem o enfermeiro consegue ser “enfermeiro”, salvaguardando o seu modelo, implementando autonomamente o seu mérito, explorando maximamente os seus recursos mentais, acautelando a sanidade do serviço. O Sistema frustra, está feito para frustrar, e está feito para que a Opinião Pública culpabilize os que, muitas vezes, não podem mostrar o que valem. O mesmo Sistema que vê o enfermeiro como “funcionário”, a enfermagem mais como “recurso” do que como “arte” e a pluralidade dos pacientes enquanto “massa” produtiva e dependente. Ora, o Sistema não pode pedir, em simultâneo, inteligência, eficácia, e submissão. Precisamente porque o fez, os enfermeiros perderam a paciência. A “revolução” que está em marcha há muito que se podia prever. E eu, como profissional de saúde, não posso deixar de com ela me identificar.

Fisioterapeuta e escritor