Pode ser impressão minha, como se costuma dizer, mas tenho observado com surpresa uma crescente relevância dada pela comunicação social a um pequeníssimo partido, com um único deputado, que dá pelo nome bizarro de “Chega”.

Uns artigos são contra, outros são a favor, outros ainda são mais ou menos. E quase todos prevêem grande potencial de crescimento. Alguns garantem mesmo que já cresceu imenso. Em qualquer caso, todos fazem publicidade a um partido menor e com menor capacidade de articulação do seu programa político — se é que o tem.

Trata-se sem dúvida de uma dissonância cognitiva. Não gostaria de especular sobre as motivações que a alimentam. Mas não é difícil percepcionar as consequências políticas — intencionais ou não — dessa dissonância cognitiva.

Em primeiro lugar, a publicidade ao “Chega” é sobretudo útil à esquerda radical. Funciona como confirmação da sua delirante visão da “direita” como “inimiga da democracia”. A ideia hoje é re-criar a dicotomia “Fascismo ou Revolução”, agora na versão “Chega ou Esquerda Radical”.  Mantém-se desta forma a ignorância da esquerda troglodita sobre a democracia liberal (por eles designada capitalista) que se funda na rivalidade pacífica e civilizada entre esquerda e direita democráticas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Aquela visão troglodita da esquerda radical foi entre nós corajosamente enfrentada e derrotada por Mário Soares, enquanto líder do Partido Socialista e da esquerda democrática. Atrevo-me a pensar que continua a ser do interesse próprio esclarecido do Partido Socialista tentar permanecer fiel ao legado de Mário Soares.

Em segundo lugar, temos as consequências da publicidade ao “Chega” no âmbito da direita democrática. Aqui, o fenómeno é ainda mais bizarro — porque é simplesmente suicida.

Muita gente anda zangada com a liderança do PSD de Rui Rio. Isto pode ser compreensível — dado que, salvo melhor opinião, o Dr Rui Rio não tem explicado com vagar (para já não dizer com vigor) o que distingue o seu programa. Mas, em vez de apresentarem novas ideias para o PSD, alguns críticos de Rui Rio não têm melhor ideia do que apostar no crescimento de um grupelho radical — basicamente com o objectivo de poder dizer que é o alegado “centrismo” de Rio que faz crescer o “Chega”.

Receio ter de dizer que, na base desta comum aposta de uma certa “esquerda” e de uma certa “direita” na conversa sobre o Chega, está uma profunda ignorância política — que, sem receio, deve ser enfaticamente denunciada e ridicularizada como aquilo que realmente é: primitiva, terceiro-mundista, tribal.

A esquerda que define a direita como fascista (que para eles é sinónimo de capitalista) é a esquerda do terceiro mundo que alimentou as ditaduras comunistas na Rússia, na China, na Coreia do Norte, em Cuba, na Venezuela e lugares afins.

A direita que define a esquerda como comunista (e, muitas vezes, também como “capitalista”) é a direita terceiro-mundista — que infelizmente teve algum impacto episódico, embora trágico, no continente europeu, um pouco menos episódico, possivelmente menos trágico, na Península Ibérica e na América Latina.

Essa chamada “direita” (em rigor, uma mera versão contra-revolucionária do colectivismo revolucionário anti-liberal) simplesmente ignorou — e continua a ignorar — que Churchill, De Gaulle e Adenauer, Ronald Reagan e Margaret Thatcher foram líderes conservadores anti-comunistas e anti-fascistas. É aquela mesma chamada “direita” que provincianamente ignora estes factos e que continua a dizer hoje que o PSD de Sá Carneiro e o CDS de Adelino Amaro da Costa eram… “de esquerda”.

Dois pontos devem ser recordados contra o provincianismo terceiro-mundista da esquerda e da direita colectivistas e anti-liberais:

Primeiro, não há democracia liberal sem pelo menos dois partidos rivais que concorrem entre si no Parlamento. Os seus programas devem ser saudavelmente distintos e concorrenciais. Mas ambos devem simultaneamente convergir enfaticamente na defesa comum das regras gerais da democracia liberal. Nenhum partido sério da esquerda ou da direita democráticas admite ou jamais admitiu a menor dúvida sobre as suas credenciais demo-liberais.

Segundo, convém não projectar no eleitorado as pulsões tribais da chamadas “redes sociais”. Uma coisa é o que a bolha mediática propaga — outra coisa é o que os eleitores escolhem nas urnas e nos seus modos de vida quotidianos.

Dois exemplos recentes podem ilustrar estas observações:

No Reino Unido, os radicais anti-Churchill, anti-capitalistas e anti-semitas da dupla Corbyn/McDonnell tiveram uma derrota histórica nas últimas eleições de Dezembro do ano passado; e o novo moderado líder trabalhista, Sir Keir Starmer, está agora a re-centrar o seu partido, revelando uma robusta e credível alternativa à (também histórica) maioria de centro-direita obtida por Boris Johnson.

Nos EUA, o sr. Trump venceu as últimas eleições com base na resistência ao radicalismo crescente e algo delirante do partido democrata. Entretanto, os democratas puseram a andar o bizarro sr. Bernie Sanders e re-centraram o discurso com Joe Biden. Este re-centramento imediatamente pôs em causa a vantagem nas sondagens do sr. Trump.

Em suma: como dizia Mário Soares — contra Álvaro Cunhal e os saudosistas do antigo regime — devemos confiar no bom senso dos eleitores. E, como dizia Winston Churchill, “Study History, Study History!” (mas, de preferência, não apenas da América Latina ou da Península Ibérica…).

Post-Scriptum: É incontornável registar que, contra ventos e marés da esquerda e da direita radicais, o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa tem procurado defender o “equilíbrio do navio” — uma expressão consagrada de Edmund Burke e Michael Oakeshott (dois conservadores liberais) sobre a democracia liberal, fundada na concorrência civilizada entre esquerda e direita democráticas. Voltarei a este tema.