Nas recentes eleições legislativas, deparámo-nos com um cenário que merece reflexão profunda e ação urgente: 122 mil votos de emigrantes foram considerados nulos. Este número representa 37% do total de 333 mil votos emitidos por esta comunidade, mais de 1 em cada 3 votos. Este dado não é apenas uma estatística; é um sinal alarmante de que se passa algo fundamentalmente errado no nosso processo democrático.

Algumas vozes justificam este fenómeno com a falta de literacia ou de atenção dos emigrantes, dada a quantidade de votos recebidos sem cópia do documento de identificação ou com a cópia inserida no envelope errado. Mesmo com instruções aparentemente claras. Contudo, a causa do problema pode ser outra, tal como o jornalista e comentador do Observador Paulo Ferreira brilhantemente ilustra com esta metáfora. Parafraseando: “se esporadicamente alguém entra em contramão numa autoestrada, a culpa pode recair sobre o indivíduo; mas se dezenas de pessoas o fazem todos os dias, então é sinal que há um problema de sinalização naquela entrada para a autoestrada”. Aqui, o “problema na sinalização” é o sistema de votação via postal ou talvez as próprias instruções, que não são suficientemente claras ou acessíveis para todos os seus utilizadores.

Felizmente, há abordagens eficazes para resolver este tipo de problemas, metodologias de design que colocam as pessoas no centro do processo. Na empresa de human-centered design onde trabalho, enfrentamos desafios semelhantes todos os dias.

Decidi desafiar os meus colegas na empresa para fazerem um exercício rápido que ilustrasse o que poderia ser um folheto de instruções simplificado. Pedi-lhes que considerassem o seguinte cenário: “imaginem um ou uma emigrante em casa, depois de um longo dia de trabalho, já com pouca energia física e mental, e com um filho ao colo e outro aos pulos, de tablet na mão, enquanto o cônjuge vê televisão com o volume alto, e que precisa de tratar do seu voto nessa noite; utilizando os vossos conhecimentos de boas práticas de design de interação, usabilidade, acessibilidade e escrita clara, como poderia ser uma versão simplificada e mais acessível destas instruções?”.

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O resultado pode ser visto abaixo: uma versão simplificada, sustentada, por exemplo, numa linguagem mais natural em oposição a expressões mais formais, instruções divididas por mais passos em vez de misturarem diferentes ações na mesma frase, ilustrações maiores, mais representativas de cada passo e mais auto-suficientes (imagens que valem mil palavras).

Obviamente, este exercício carece de pesquisa no terreno e testes com emigrantes. Um projeto sério e profissional poderia seguir a seguinte linha metodológica: Estudo etnográfico com observação dos emigrantes a passarem pelo processo completo de votarem por via postal; algumas entrevistas a emigrantes; workshops de cocriação de soluções com emigrantes, decisores, políticos e juristas; prototipagem de soluções; validação empírica através de testes com uma amostra representativa de emigrantes; implementação final.

O custo de um estudo tão essencial é surpreendentemente baixo, mesmo incluindo viagens de especialistas para várias cidades internacionais e o recrutamento de muitos participantes para se obter uma amostra representativa. No nosso caso, com um desafio destes, teríamos a sorte de poder contar com o apoio da rede mundial de parceiros UXalliance para efetuar a pesquisa no terreno de forma eficiente e económica, garantindo soluções bem fundamentadas com um investimento controlado.

Concluindo: o Direito de Voto é a pedra angular da democracia. O Direito a Entender é um direito cada vez mais reconhecido — veja-se o Decreto-Lei nº 97/2019 que obriga ao uso de linguagem clara nos tribunais. Tudo isto reforça a importância de assegurar que todos os cidadãos, independentemente das suas capacidades e circunstâncias, devem poder entender como exercer o seu direito de voto. Quando um emigrante vê o seu voto anulado por não compreender o “procedimento correto”, é como se lhe fosse negado o direito de participação democrática.

É possível – corrijo — é preciso resolver este problema. Os meios existem. Os custos não são desculpa. Talvez falte vontade política.