Decidir se as escolas fecham portas, ou se se mantêm abertas em regime presencial, não era linear. Num contexto de agravamento da pandemia, a complexidade dos múltiplos factores sociais e sanitários impede cenários ideais, pois todos os caminhos apresentam riscos elevados. Daí que, apesar de haver consenso científico sobre a baixa transmissibilidade em contexto escolar, não existiu consenso científico sobre a eficácia de encerrar escolas para conter a propagação do vírus, face à mobilidade social que escolas abertas geram. A decisão tinha, por isso, de ser política e o governo decidiu politicamente: manter as escolas abertas. E fez muito bem, por quatro razões.
- O governo respeitou as evidências científicas, que mostram que o encerramento de escolas não é uma medida-chave para travar a pandemia. O próprio Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) reconheceu-o há dias. A experiência desde Maio e desde Setembro mostrou que as escolas não são espaços propícios ao contágio — daí que a reabertura das escolas em toda a Europa não esteja associada a um acelerar dos números de infecções. Os casos existentes foram geralmente de infecções fora dos muros das escolas, e não por contágio dentro das escolas — o que mostra o excelente trabalho das comunidades escolares na preparação do ano lectivo. Além disso, temos indicadores em abundância sobre a Covid-19 na saúde dos mais novos: não somente sofrem menos sintomas ou manifestações graves da doença, como aparentam ser muito menos contagiosos para terceiros. Não há risco zero, como é óbvio, mas o anúncio de aplicação de testes antigénios nas escolas ajudará a gerir os casos que surgirem.
Naturalmente, há um outro lado: o funcionamento normal das escolas mobiliza centenas de milhar de pessoas, desde alunos e famílias aos professores e funcionários. Ou seja, o problema sanitário não estando dentro das escolas pode, mesmo assim, ser potenciado pelo facto de as escolas estarem abertas. É algo que merece atenção e que justifica a pergunta: no momento de meter tudo na balança, havendo cenários que estimam, mesmo com as escolas abertas, que é possível um confinamento travar o acelerar da pandemia, valerá mesmo a pena sacrificar os miúdos e provocar todos os danos sociais e educativos acima referidos? A minha resposta seria sempre que não – e isso leva-nos ao ponto 2.
- O governo percebeu, finalmente, que fechar escolas tem um tremendo impacto educativo e social. Digo ‘finalmente’ por um motivo: entre Março e Junho, o governo errou ao não fazer regressar os alunos do ensino básico às escolas e o seu actual discurso político serve de reconhecimento desse erro. E, claro, tudo hoje é mais claro de ver: quando agora nos questionamos sobre o encerramento das escolas, enquanto medida de contenção da pandemia, compreendemos bem as implicações educativas e sociais do que está em causa, pois tivemos a experiência do que sucedeu desde Março de 2020. E essa experiência foi brutal.
Conhecemos o dano na aprendizagem dos alunos, que foi muito acentuado entre os alunos do 1º ciclo e que levou vários a regredir meses na sua aprendizagem. Sabemos que os alunos de contextos socialmente desfavorecidos são os mais prejudicados pela suspensão do ensino presencial, porque são os que têm menor apoio familiar e porque são (em média) as mais prováveis vítimas do insucesso escolar. Descobrimos que o ensino a distância, tal como se implementou, é um péssimo substituto do ensino presencial e um acelerador de desigualdades sociais e educativas. Fomos confrontados com a degradação do bem-estar físico das crianças confinadas e da saúde mental dos jovens que vêem as vivências da sua infância ou adolescência canceladas. Estimámos os custos económicos de tudo isto, tanto futuros (menor crescimento do PIB) como presentes (impacto orçamental dos apoios em assistência à família para alunos confinados com menos de 12 anos). O custo de fechar escolas no ano lectivo passado foi demasiado elevado, e voltaria a sê-lo se o ensino presencial fosse novamente suspenso.
- Ao reconhecer o pesado dano causado pelo encerramento das escolas básicas entre Março e Setembro, o governo apercebeu-se que não seria socialmente sustentável infligir novo dano social, educativo e sanitário nas crianças e nos jovens. A questão actual não era se, agora, as escolas deveriam fechar, mas sim se as escolas deveriam fechar em Janeiro 2021 depois de já terem estado fechadas entre Março e Setembro 2020. Era imprescindível perceber que o dano que agora seria causado aconteceria sobre um dano já infligido, e cuja recuperação não aconteceu ainda. Aliás, o governo também sabe bem a fragilidade política que apresenta nesse dossier: em tudo o que tem a ver com a recuperação das aprendizagens por parte dos alunos, o governo tem sido lento e ineficaz. Seja pelas contratações prometidas de assistentes operacionais que ainda não se concretizaram(aparentemente porque as Finanças não autorizaram). Seja pelo arranque de ano lectivo com 5 semanas dedicadas à recuperação de aprendizagens que foi um logro. Seja pela ignorância ainda reinante sobre o impacto na aprendizagem dos confinamentos de 2020, visto que só agora o Ministério da Educação está a fazer esse levantamento com testes aos alunos. Com este histórico de medidas adiadas, aumentar o dano na aprendizagem dos alunos com o encerramento das escolas seria, para muitos deles, condená-los ao insucesso.
- Por fim, o governo sabe que as escolas não estão preparadas para o ensino a distância. E sabe-o bem porque tem sido uma falha de planeamento evidente na condução política deste ano lectivo. Os computadores prometidos no âmbito da Escola Digital só em Dezembro começaram a ser distribuídos a alunos do secundário (cerca de 100 mil), havendo 75 mil já adquiridos e por distribuir (nestas semanas), e outros 260 mil recentemente encomendados. Além disso, não houve real formação oferecida aos professores para que se familiarizassem com as ferramentas digitais do ensino a distância, nem equipamento informático disponibilizado aos docentes, nem garantidas condições de acesso à internet para todos. Se o governo encerrasse escolas, implementando um novo período de ensino a distância, não seria apenas novamente um desastre para a aprendizagem dos miúdos — seria um estrondoso fracasso político, pois exporia a incapacidade do governo em dar resposta às necessidades de alunos e escolas em termos de equipamento.
A conclusão possível, por isso, é esta: o governo decidiu bem porque reconheceu onde errou no passado e porque valorizou devidamente as questões sociais associadas à educação, não descurando as evidências científicas. E, também, porque percebeu as suas próprias fragilidades e confiou nas escolas para gerir uma situação de risco como a actual — e os directores e professores, pelo que fizeram desde Setembro, merecem essa confiança. Foi, por tudo isso, um dia feliz para a Educação, que uniu autoridades públicas, associações de directores, sindicatos de professores e associações de pais à volta da valorização das escolas como pilar da nossa sociedade. E, no final, foi pena que a estes não se tivessem juntado os partidos da direita, que apontaram explicitamente (PSD) ou timidamente (CDS) para o encerramento das escolas do 3º ciclo do básico e do secundário.