A União Europeia não é uma estrutura que abdique da “estadualidade” dos seus membros. Entenda-se aqui por “estadualidade” um elevado grau de estabilidade institucional, apto a sobrepor-se a pressões de natureza patrimonialista ou clientelar e, inerentemente, a permitir a imparcialidade e a racionalidade decisória perante horizontes temporais alargados.

O requisito explícito de democraticidade dos membros da União de nenhum modo se dissocia da estadualidade nesse sentido. Os procedimentos democráticos correspondentes serão pois, necessariamente, procedimentos com um elevado grau de institucionalização, devidamente invulneráveis a pressões demagógicas. Tudo aquilo que um referendo sobre questões orçamentais, convocado com poucos dias de antecedência e com uma pergunta imprecisa não é.

O que desde logo nos permite compreender que a proclamada aversão europeia à “democracia” que nestes dias se vive na Grécia é uma muito salutar aversão àquilo que as democracias europeias não são nem devem ser enquanto pressupostas democracias constitucionais de Estados avançados. De resto, remonta a Aristóteles a contraposição entre democracias constitucionais e democracias demagógicas, algo que autoproclamados herdeiros da cultura grega clássica deveriam ter presente…

O requisito de estadualidade no sentido exposto encontra-se implícito no facto de a União assentar num princípio básico de responsabilidade partilhada dos seus membros pela estabilidade das estruturas políticas, económicas e monetárias da mesma. É o que se evidencia, nomeadamente, nos critérios de estabilidade associados à moeda única, tal como prescritos desde o Tratado de Maastricht. Com efeito, o que está fundamentalmente em causa é garantir que cada Estado que adere ao euro assume o encargo de garantir a sua salubridade financeira e fiscal, estando ciente que os efeitos do incumprimento por cada um se repercutem negativamente em todos os outros. Tal, por afetarem a estabilidade da estrutura geral e, bem assim, a confiança depositada em cada Estado membro.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O que não significa que esteja em causa uma equação “nacionalista” em contraponto a uma equação “europeísta”. O que esteve em causa no Tratado da União foi, antes, a devida consciência de que a pressão sobre a estrutura da União se tornaria incomportável, destruindo-a a prazo, caso as estruturas estaduais, com um maior grau de sedimentação histórica, não se assumissem como seus pilares. Não há pois um “sonho europeu” sobreposto aos Estados nacionais que esteja a ser destruído nas atuais circunstâncias por instituições malévolas, tomadas por acessos “economicistas” ou “financeiristas”. Muito mais é o caso de um arranjo cauteloso e historicamente consciente, assente fundamentalmente nos Estados enquanto Estados, ter sido posto em causa por membros que pretenderam auferir dos benefícios da estrutura geral não assumindo as correspondentes responsabilidades, gerando pois um desequilíbrio que qualquer “europeísta” convicto deveria temer.

Os planos de resgate aprovados a partir de 2010, e as subsequentes medidas de emergência do BCE, obedeceram à estrutura básica fixada no Tratado da União, porventura aprofundando-a. Tal, na medida em que a ideia de responsabilidade partilhada haja dado lugar àquilo que já se designou como “nacionalismo recíproco”. Neste quadro, Estados em dificuldades beneficiam da tolerância e dos meios de outros Estados membros e das instituições – em que avultam as “bazucas” entretanto criadas pelo BCE –, mas assumem a responsabilidade de procederem às reformas que assegurem a sua, e de todos, estabilidade futura, desde logo por assegurarem a sua saúde financeira e a competitividade das suas economias. É este o altruísmo que se lhes pede, traduzido num benefício para si mesmos de que depende a estrutura geral e a confiança em cada um. E é nesta medida que os programas de assistência e as medidas do BCE são “condicionais”. De outro modo, o resultado seria um agravamento do fenómeno de free riding, que os programas de resgate e demais medidas de apoio se destinam a obviar.

A democracia portuguesa terá sabido até ao momento dar resposta a esse desafio, pelo menos aparentemente – está ainda por confirmar se em razão de uma maturidade já alcançada ou de circunstâncias especiais geradoras, num período crucial, de uma maioria estável com uma liderança responsável. Lamentavelmente, o mesmo não se passou com a democracia grega. O que porventura se explica pelo facto de não se lhe associar um grau de sedimentação institucional – de estadualidade, no sentido exposto – que o tenha permitido. É o que foi já explorado exemplarmente por Jorge Almeida Fernandes (Público, 01/07/2015), tomando boa nota do diagnóstico feito por Dominique Strauss-Kahn, segundo o qual “o problema da Grécia não é económico. É político e cultural”, tendo o FMI subestimado “a profundidade das fraquezas institucionais da Grécia”.

Facto é que o diagnóstico sobre o carácter incipiente do Estado grego – e, por conseguinte, da democracia grega –, com uma inerente vulnerabilidade a redes clientelares e uma corrupção disseminada, se encontra de há muito feito (veja-se, para além de Mark Mazower, o tratamento recente de Francis Fukuyama, Political Order and Political Decay, p. 94 segs.). Facto também é que a riqueza artificial associada à adesão ao euro, com a correspondente facilidade no acesso ao crédito, alimentou perversamente tal estado de coisas, matando qualquer ímpeto reformista. Facto, por último, é que as instituições políticas gregas não souberam ou não puderam assumir como seus os programas de resgate aprovados a partir de 2010 – faltando, para além de racionalidade decisória, a hombridade de assumir responsabilidades próprias –, gerando-se o clima generalizado de frustração e ressentimento que culminou na eleição do Syriza.

A partir daqui, o resultado era esperado…

Luís Pereira Coutinho é Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa