1. A sub-comissão de ética (da primeira comissão parlamentar) reuniu esta terça-feira para apreciar o caso Maria Luís. Passados escassos cinco dias a opinião publicada por muitos cidadãos de todos os quadrantes políticos, incluindo quem no PSD pensa de forma autónoma e não está amarrado por uma solidariedade pessoal (Manuela Ferreira Leite, Paulo Rangel, António Capucho, Marques Mendes, José Eduardo Martins, etc.) é unânime em criticar, no campo ético, a aceitação por parte de Maria Luís de um cargo na Arrow. Não há volta a dar, temos um grave caso de conflito de interesses. O que não quer dizer que no plano jurídico a contratação de Maria Luís não seja legal e que à face da actual lei de incompatibilidades de cargos políticos e do estatuto do deputado não possa acumular o cargo de deputada com o de administradora não executiva.

Este caso interessa-me, não apenas pela sua singularidade, mas como estudo de caso mais geral em torno da necessidade de reforma do sistema político. Raros são os que, neste debate, consideram que é ético aquilo que é legal – é a tese Pina Moura. Poucos são os que consideram que são coisas distintas, mas que a questão relevante é a questão legal. A esmagadora maioria considera que a avaliação deve ser feita aos dois níveis, separadamente. Diga-se em abono da verdade que só causa confusão a sub-comissão de ética ter esta designação pois a sua predecessora não se tem pronunciado essencialmente sobre questões éticas, mas sobretudo sobre questões de legalidade. Porém, se atentarmos às atuais competências da primeira comissão verificamos que para além de verificar, apreciar e emitir parecer sobre incompatibilidades de deputados, deve também apreciar eventuais conflitos de interesses.

Enfim, aguardaremos com expetativa o debate e deliberação da primeira comissão parlamentar (e sub-comissão) que só agora se inicia. Mas desde já podemos iniciar a discussão dos processos decisórios e da legislação relevante.

2. A Assembleia da República (AR) tem nestes casos, e no que se refere ao mandato dos deputados um triplo papel: o de legislação, o de interpretação da legislação (parecer), e ainda o de deliberação sobre se os deputados cumprem ou não as regras, previstas na legislação, e que lhes dizem respeito (deliberação sobre parecer). É inequívoco que AR tenha de realizar a primeira e a terceira função, mas não percebo que, na elaboração do parecer, não pudesse haver uma comissão de ética externa à AR, mas aprovada por esta, a elaborar tal parecer.

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A XIII legislatura deixou de ter uma comissão para a ética, cidadania e comunicação, como existia na XII legislatura, e passou a ter uma sub-comissão. As regras não escritas do passado ditam que o deputado(a) relator(a) costuma ser do partido do deputado cuja situação está a ser apreciada. Assim aconteceu. Foi nomeado um relator do PSD. Salvo melhor opinião não me parece que seja a melhor prática. Então o deputado do Partido A, é que vai analisar se existe alguma violação da lei por parte do deputado do partido A? Claro que ser o deputado do partido B (da oposição a A) pode não ser a melhor solução. Mas à que pensar qual deveria ser a melhor solução.

Por exemplo, na sub-comissão de ética, e como excepção à regra, teria de haver dois relatores distintos (preferencialmente de áreas políticas distintas) que produziriam um único relatório consensual, ou que, na impossibilidade de o fazerem, apresentassem dois relatórios distintos. Não estou convicto que as atuais regras processuais, escritas e não escritas, para lidar com estas situações sejam as melhores, mas sobretudo não estou nada convencido que as atuais leis (de incompatibilidades e do estatuto de deputado) sejam as adequadas.

3. A agenda da reforma do sistema político tem estado mais nos partidos tradicionalmente “anti-sistema”, por vezes de forma algo populista, e pouco presente nos partidos que têm assumido responsabilidades governativas. É isto que em parte explica o sucesso, em Espanha, de partidos como o Podemos, à esquerda, do Cyudadanos à direita, ou na Grécia, do Syriza. Em Portugal, é o que explica a ascensão do Bloco de Esquerda.

Os partidos mais moderados, à esquerda e à direita, PS e PSD, estão condenados a prazo ao declínio se não abraçarem progressivamente a causa da reforma do sistema político, da transparência, do combate à corrupção, e da dignificação e accountability dos titulares de cargos políticos (nacionais, regionais e locais) e dos dirigentes do setor público empresarial. Ainda hoje tomámos conhecimento que a Polícia Judiciária fez buscas na Câmara Municipal de Gaia e em casa de ex-gestores de uma empresa municipal. Felizmente, que inúmeras câmaras são exemplos de sucesso e rigor na gestão. Infelizmente há ainda algumas notícias, como estas, que não nos surpreendem e que refletem uma realidade que urge erradicar por duas vias que devem ser complementares: a ética e a lei.

A ética (ou falta dela) surge do ambiente familiar e da escola (sobretudo no pré-escolar e básico). Visto que não cabe ao Estado influenciar a educação e o ambiente familiar, talvez não fosse má ideia que fosse obrigatório, nalguma disciplina do básico, ensinar entre outras coisas o imperativo categórico kantiano. Porque não uma disciplina obrigatória de ética no 9º ano? Já no que toca à lei cabe aos deputados alterá-la. Na anterior legislatura, PS, PCP e Bloco (apenas estes três partidos) propuseram propostas de lei versando aumentar o controle e prevenir as incompatibilidades e os conflitos de interesse de titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos. Por exemplo o PS propôs, entre outras medidas, que fosse criado um registo de interesses nas autarquias de âmbito municipal, à semelhança do que já existe para os deputados à Assembleia da República. Nenhuma das propostas foi aprovada.

Existe agora a possibilidade de, sem radicalismos, fundamentalismos e populismos, mas com uma ideia clara dos objetivos que se pretende atingir, caminhar no sentido de melhorar as leis de incompatibilidades e o estatuto do deputado. Melhores leis criam basicamente melhores incentivos, desde logo para os que se dispõem a desempenhar cargos políticos e a seguir para um comportamento exemplar quando assumem esses lugares. Mas não dispensam a formação ética, pois há sempre formas de contornar as leis.

4. Neste projeto, necessariamente incremental e nunca esgotado, de reforma do sistema político, espero que o novo Presidente da República desempenhe um papel de relevo. A sua magistratura é, neste campo, sobretudo de influência, mas espero que se faça sentir. Marcelo Rebelo de Sousa sabe, tão bem como nós sabemos, que os portugueses anseiam por uma sociedade mais justa e fraterna e que a cotação da “classe política”, à qual também pertence (embora partilhada com a de professor), não é a melhor. Na realidade não existe uma classe política, existem apenas políticos e políticas, essencialmente diversos. Os votos que fazemos para este mandato é que coloque como uma das suas prioridades a dignificação do exercício de cargos políticos ou públicos, no setor administrativo ou empresarial, e que seja bem-sucedido nessa agenda.