No fim de semana fui ver O Jogo da Imitação. Gostei, mas bastava, dado o tema (máquina Enigma, descodificadores de Bletchley Park, recolha de desinformação e fornecimento de desinformação), que não fosse um tremendo insulto à inteligência e ao dinheiro gasto no bilhete para me contentar.
Neste caso, como em tantos outros, distancio-me de Hitler para concordar com Churchill. Enquanto o alemão desconfiava dos serviços de informações e desprezava os espiões, Churchill protegia-os, criava organismos destinados a sabotagens e operações clandestinas e dava-lhes a ordem de ‘incendiar a Europa’ e deliciava-se com os planos mais ousados a que se entregavam os agentes secretos.
Se a esta reverência pelas histórias de espionagem e contra-espionagem acrescentar o ingrediente Segunda Guerra Mundial, o resultado são duas prateleiras inteiras (incluindo livros encavalitados) de uma estante da minha sala cheias de livros. Estão lá os vários volumes de British Intelligence in the Second World War de F H Hinsley. A história do famoso e infame Special Operations Executive (o tal que devia deitar fogo à Europa, que se dedicava a um tão apelativo ungentlemanly warfare – uma espécie de guerra sem maneiras – e que dava oportunidades de redenção aos jovens com tendências criminosas como o Basil Seal, de Evelyn Waugh, e a jovens senhoras aventureiras à procura de escapar aos plácidos destinos femininos pré-determinados) de MRD Foot e outro volume que clama contar a ‘história secreta’ do já secreto SOE. Uns tantos tomos dedicados ao MI6. Quase toda a produção livresca de John Lukacs – autor a quem, esclareça-se, não se deve levar a mal já ter sido lido e até apreciado por José Sócrates.
Há os livros de memórias de Churchill sobre a guerra. Vários Martin Gilbert. E muitos sobre a vida na Grã-Bretanha durante a guerra. Como era a alimentação com o racionamento. Como se vestiam e que alterações na roupa trouxe a guerra. As alterações na estrutura familiar provocadas pelo recrutamento dos homens para as forças armadas, pelos empregos que as mulheres ocuparam em todo o lado, pelo afastamento das crianças das cidades em fuga aos bombardeamentos. Até tenho o manual das aulas do SOE, que me será certamente útil se alguma vez necessitar de arrombar a porta de minha casa.
A Segunda Guerra Mundial tem alguns paralelos curiosos com o presente e os perigos do extremismo islâmico (e não apenas do terrorismo). Os nazis eram um grupo de loucos dispostos a tudo, com um tipo particular de fé ateia que não está muito longe da intransigência fundamentalista islâmica, e que se tornaram problemáticos precisamente porque não podiam ser avaliados pelos parâmetros estabelecidos: a lógica intrínseca diferente impedia que se soubesse o que esperar daquele regime onde a sensatez e a racionalidade pareciam não entrar.
Tal como agora se chama moderados a todos os clérigos e políticos islâmicos que não apoiam explicitamente atos terroristas (mesmo aos reacionários que defendem aberrações), também então se supunha que ‘moderados’ como Goering poderiam mudar o regime por dentro.
A discussão ética sobre os ataques com drones assemelha-se à das bombas V1 e V2. Philip Ziegler, no seu London at War, conta como os britânicos já moídos por anos de guerra os sentiam particularmente cruéis por serem enviadas de um local seguro. Ao contrário dos bombardeamentos aéreos, em que os pilotos da Luftwaffe arriscavam (e muitos perdiam) a vida nos céus ingleses.
Durante anos, mediante o crescente perigo nazi, França e Grã-Bretanha escolheram o apaziguamento. No mundo ocidental ela prolifera atualmente em todas as cabeças bem pensantes que se repugnam com a sobranceria europeia e americana de se orgulharem dos seus valores (democracia, liberdade e mais umas coisas enfadonhas) e até os promoverem aqui e ali noutras partes do mundo. Ou que veem com desconcertante bonomia a violência sobre as mulheres e os homossexuais no mundo islâmico – ao mesmo tempo que por cá gritam ‘machismo’ e ‘homofobia’ de cada vez que alguém questiona levemente direitos de abortar ou discorda de qualquer pormenor sobre orientação sexual.
O apaziguador-mor dá pelo nome de Barack Obama. Eleito, praticou uma aceitação acrítica de todas as barbaridades correntes no Médio Oriente. Fez um infame discurso no Cairo onde sancionou a supressão dos direitos humanos das mulheres no mundo islâmico. Tentou uma aproximação ao Irão, que a desprezou, e viu os protestos (reprimidos com violência e sangue) aquando da fraude eleitoral de Amhadinejad em 2009 como um enfado destinado a dar-lhe cabo da narrativa de que o de Teerão era um governo legítimo. Retirou a correr do Iraque, abandonando o país ao que viria a ser o ISIS. Desacertou em tudo quanto pôde na forma como respondeu à Primavera Árabe.
O Chamberlain do nosso tempo vai, em 2017, deixar um mundo bem mais perigoso do que o de 2009.
Não que eu recuse de todo o apaziguamento. Por razões diferentes dos seus autores, com a sua incapacidade de perceber que do lado oposto estão loucos que não medem sucesso e falhanço pelo número de pessoas vivas e pela qualidade de vida das populações, como nós costumamos. Mas porque cada vez mais me convenço que uma guerra é tão maléfica como uma paz podre. A decisão por uma ou por outra não obedece a leis gerais mas a circunstâncias concretas.
Pelo menos aprenda-se com a Segunda Guerra Mundial que o apaziguamento é uma opção pela paz podre e não pela paz.