A história não se faz só de momentos históricos e a discrição com que a cimeira sino-europeia ocorreu esta semana foi um exemplo disso. Segunda-feira, os principais líderes da União Europeia (Leyen, Michel, Merkel) reuniram virtualmente com Xi Jinping e respetiva comitiva durante cerca de duas horas. A conversa foi longa, tensa e politemática: do clima à tecnologia, do comércio aos direitos humanos. Os homens de Xi para a política externa e para a estratégia internacional também participaram.
Depois da declaração de 2019, em que a Comissão Europeia identificou a China como “rival sistémico”, este tratou-se do maior momento de tensão pública entre os dois blocos – se assim os quisermos chamar. A rivalidade foi reafirmada e o objetivo primordial da discussão (um acordo de investimento com maior reciprocidade a abertura de mercados entre Bruxelas e Pequim) novamente adiado, desta vez para final do ano. Excecionalmente, tópicos como os campos de concentração em Xinjiang ou a perseguição a minorias no Tibete foram abordados de forma aberta, na cimeira e na conferência de imprensa que lhe sucedeu.
Dos relatos obtidos pela imprensa internacional, a frente europeia dividiu-se em dois eixos: Charles Michel, mais focado no escrutínio democrático e nos direitos humanos, e a chanceler e a sua ex-ministra mais dedicadas aos interesses comerciais da UE e aos esforços empresariais dos seus países. Idealismo de um lado, pragmatismo do outro, a China diante de ambos.
O presidente do Conselho Europeu propôs uma visita oficial ao Tibete e a entrada de observadores internacionais em Xinjiang, num avanço da UE no que a preocupações humanitárias diz respeito. Merkel, por outro lado, já na conferência de imprensa, gastou mais tempo a vender a qualidade de vinhos e cervejas alemãs (sim, a sério) do que a falar da democracia em Hong Kong ou das perseguições étnicas que caracterizam o regime de Xi Jinping.
O discurso do Estado da União, três dias depois, absorveu a maioria das atenções, mas os dias que o antecederam não lhe foram alheios na forma e no conteúdo. Quando Ursula Van der Leyen assume a “vocação universal da democracia” é claro a que ouvidos as suas palavras se dirigem. A sua referência aos uigures também.
Não é por acaso que um grupo de eurodeputados e académicos assinaram, no dia da referida cimeira, uma carta em publicações como o Le Monde ou o Handelsblatt, pedindo uma mudança na relação da União Europeia com Taiwan, conferindo-lhe maior reconhecimento e integração. “A Europa deve oferecer um maior apoio à democracia de Taiwan, que luta para sobreviver”, escreveram figuras como Nathalie Loiseau (presidente da sub-comissão de Segurança e Defesa do Parlamento Europeu) e Elmar Brok (ex-presidente da comissão de Negócios Estrangeiros). Numa irónica maneira de lhes dar razão, a China invadiu o espaço aéreo de Taiwan em resposta à ida de um secretário de Estado norte-americano ao tributo póstumo a Lee Teng-hui (o primeiro presidente eleito da ilha).
Lentamente, como em quase tudo o que é diplomacia, as peças mexem. Fora do que é feito em canal fechado, damos por esse movimento em pequenos mas simbólicos gestos, como a carta pró-Taiwan que aqui citei, a renúncia do ator John Boyega a campanhas publicitárias que envolvam a substituição de atores negros na China, o corte da H&M com fábricas localizadas em Xinjiang ou o boicote ocidental ao remake da Mulan, que a Disney filmou em parceria com agências estatais chinesas que guardam campos de concentração.
Xi Jinping toma as atenções dadas pela comunidade internacional às suas atrocidades como uma “interferência externa” no seu país. Esquece-se que dificilmente as gerações europeias que convivem há 75 anos com a memória do Holocausto permitirão que um regime que busca purezas raciais, estiriliza mulheres de minorias étnicas e lhes rapa o cabelo para vender como perucas seja tratado com indiferença.
O governo alemão pode, evidentemente, manter a esperança de ver uma economia comunista “abrir os seus mercados” e diminuir a sua “preferência por empresas detidas pelo Estado”, numa dualidade moral que não visa mais do que proteger as exportações da sua indústria automóvel. Felizmente, as sociedades democráticas são capazes de outro tipo de princípios. Que a União Europeia os reflita.
Fortes apelos não merecem fracas aplicações.