O humor é o “produto final” da ironia. E supõe que há uma parte de nós que sobrevive e sobressai e se rebela: perante a dor; diante da forma como nos alheámos das coisas; ou quando nos insurgimos contra a estupidez. Significa que somos capazes de ir da garatuja à caricatura. Ou da dor ao absurdo. Que somos capazes de nos olhar de forma crítica (ou cínica, até). Mas significa, também, que o sofrimento não nos carcomiu a competência para pensar. Nem a liberdade de o fazer. Significa que reconhecemos que há pedaços de nós mal-amanhados, por mais que bem intencionados. Que não fugimos de os ver. Nem de os olhar como um “ponto negro” que merece zombaria, sátira ou sarcasmo. Ou escárnio, até. Mesmo que faça parte de nós.

Eu entendo o que significa rir até às lágrimas. E desmancharmo-nos a rir. E não tenho dúvidas como isso derruba as barreiras com que, estupidamente, aprendemos a viver os sentimentos. Mas vir das lágrimas até ao riso acaba por ser – talvez, ainda – mais importante. Quem não sabe estar triste desencontra-se do seu pensar. Quem não pode estar triste não ri.

É verdade que num mundo fast-food, convencionou-se que devemos estar bem dispostos. Num mundo fast-food, por mais que o bem acabe sempre por ganhar ao mal, se fingirmos que a dor não existe e se saltarmos etapas, dizendo que vai ficar tudo bem, podemos chegar à meta caminhando, sobretudo, por atalhos. (A alegria faz bem à saúde?… Excelente… Então se fizermos muita força para rir ou se nos esforçarmos por ser bem dispostos, poupamos no processo, e somos todos mais saudáveis… Mais ou menos assim…) O mundo fast-food é um mundo  de atalhos. É por isso que é um mundo que incentiva a humanização mas acarinha o fingimento. Ora, o humor é arte da verdade. E é por isso que o humor é uma bolsa de resistência contra o fingimento. Mesmo quando, precipitadamente, num mundo fast-food se confunde a risota com o rir. Ou, por vezes, quando se chama humor à chacota, fazendo por não se assumir que rirmos de nós é humildade, mas rir sobre os outros é cobardia e é vaidade. Já pela forma como apela ao encontro, o humor é inteligência e é bondade.

Há uma diferença entre rir porque se pensa ou usar a risota para não pensar. Aliás, é muito engraçado ver como as pessoas que mais se refugiam na risota são as que menos são capazes de sorrir. Sorrir como forma de dar um abraço com os olhos. Quem não sorri parece refugiar-se mais na risota, esperando que essa forma de rir seja catártica. Lembram-se das mães quando querem muito que o seu bebé lhes sorria? Pois… Para as mães, se ele sorri é porque está feliz. E na vida o sorriso e o riso são “o teste do algodão” da felicidade. Por isso mesmo, nem o facto de dizermos: “as coisas já são tão difíceis, não é?…” devia justificar que se use o rir da risota como o melhor dos estratagemas para que, à boleia do riso, se chegue ao bem estar sem passar pelo pensar. Chega de atalhos! Porque o rir é o que fica depois de se pensar. Isto é, depois do balanço que fazemos sobre nós e os outros. Quando somos capazes de ir do sentir à palavra, ou da lágrima ao riso, e chegamos a um planalto de onde percebemos que não somos só pontos negros. E que vemos mais longe, quando se chega ao humor. Sem erros (e pontos negros…) o humor não existia. O humor é um exercício de liberdade. E não há liberdade com neutralidade.

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Deixem-me só dar um saltinho à psicanálise. Temo-nos em boa conta quando pensamos. Mas, muitas vezes, pensamos melhor quando não damos por isso. Afinal, o humor acaba por ser o sexto dos sete degraus premium de pensar sem dar por disso. O primeiro, é a sensibilidade. O segundo a memória. O terceiro a intuição. O quatro, a palavra. O quinto, o brincar. O sexto, o  humor. E, finalmente, o sétimo o amor. A estes sete degraus da consciência que nos levam do sentir à relação podemos chamar inconsciente. É preciso ser “muito inconsciente” para se conseguir pensar. Precisamos muito do inconsciente para sermos alegres. E para sermos  saudáveis!

Agora, só mais um  saltinho até à relação entre  o humor ao corpo. Sendo como somos, tudo em nós é consciência. Tudo implica ligar observação, pensamento lógico, abstracção e raciocínio com emoções, sentimentos e memória. Tudo em nós liga corpo e pensamento. Na base, emoção é, simultaneamente, corpo e pensamento. Logo, reprimir emoções significa desencontrar o corpo do pensamento. E utilizar a cabeça para censurar o corpo. Nos seus ritmos. Nas diversas memórias que o compõem. Na forma como os diversos centros nervosos comunicam uns com os outros. Não há muitas circunstâncias em que ritmos, memórias e centros nervosos estejam alinhados e em sintonia uns com os outros num nível alargado de consciência. Estarão assim quando somos transparentes e espontâneos; em paz. Quando vivemos a sexualidade, desde a cabeça ao fundo da alma. Quando dormimos. Quando meditamos. Ou quando vamos do sentir ao humor. Corpo significa que não há emoções sem sentimentos. Sendo que à sedimentação dos sentimentos podemos chamar humor. Na verdade, o bom humor é um estado de síntese; permanente. Um estado líquido. O mau humor uma encruzilhada feita num nó.

Considerando, ainda, corpo e pensamento, a depressão – que é a tristeza que se reprime – é amiga da inflamação. E a alegria é imuno-estimulante. (Notem: eu disse a alegria. Não o riso.) A alegria, ao alinhar corpo e pensamento, é, sem dúvida, um bom remédio. Se lá se chegar sem fingimento. Quando o que nos leva a rir não é um bobo qualquer. É a forma como uma piada nos desafia  para compreender, num flash, aquilo que parecia entaramelado e sem solução dentro de nós. Com surpresa e com espanto. Se chegarmos ao riso sem atalhos, o humor reconcilia-nos connosco e reabilita-nos para o corpo. O humor une. Une aquilo que a educação judaico-cristã recomendou que reprimíssemos.

Concluindo, façam um favor a vós próprios: recusem-se a ser bem dispostos. É verdade que sem riso morremos por dentro. E morremos por fora, mais depressa. Mas morrer a rir?… Façam, isso sim, o caminho até serem alegres. E, depois, tentem ser felizes. A verdade é a melhor amiga da alegria. Porque isso significa que nunca perderam de vista que o humor é ir das lágrimas ao riso e do riso até às lágrimas. Humor é casar tristeza e alegria. Humor é sinónimo de gratidão. É trocar galanteios com a vida. Humor é amar. (A vida. A capacidade de pensar. O corpo. E a arte do encontro.) Humor lê-se amor. Mais do que parece.