1. Vamos ser claros: quando Rui Rio e os seus porta-vozes para a Justiça falam insistentemente da violação do segredo de Justiça e do suposto papel nefasto da imprensa para a presunção de inocência dos arguidos não estão a falar para os cidadãos comuns. Estão a dizer que querem proteger e defender as diferentes castas da classe política e da administração pública do escrutínio da comunicação social. Por outras palavras: querem impedir que os jornalistas façam o seu trabalho.
Estas intenções foram reforçadas este sábado com uma entrevista que Mónica Quintela, a porta-voz do PSD para a Justiça, concedeu ao Expresso. É certo que o programa para a Justiça de Rui Rio ainda não foi apresentado, mas as declarações de Quintela, a conhecida advogada de Pedro Dias, são mais um indicador de que se deve esperar o pior no que ao combate à corrupção diz respeito.
Advogada inteligente, Quintela bem vai jurando que não está “posta em causa a liberdade de imprensa, de expressão e de informação” (“de maneira alguma”) mas faz voz grossa para denunciar os “novos pelourinhos que são as redes sociais” onde “os arguidos são completamente crucificados”. Apesar de ainda não existir uma proposta concreta, Mónica Quintela sempre vai ensaiando uma opção: “Se calhar, tem de haver um reforço dos direitos de personalidade. Todos temos direito ao nosso bom nome” e à presunção da inocência — o que entra em confronto com o direito à liberdade de expressão e de imprensa.
Não tenho qualquer dúvida que esta opção defendida por Quintela, que bate certo com dezenas de declarações de Rui Rio (como esta) desde há vários anos a esta parte sobre a mediatização da Justiça, é um caminho aberto para propostas legislativas que reforcem o direito ao bom nome dos políticos e restantes titulares de cargos públicos, além de banqueiros e de outros poderosos. As consequências desse reforço são várias:
- Promoção de mais ações judiciais cíveis e criminais contra jornalistas, ficando facilitada a sua condenação em ações cíveis com pedidos de indemnização também eles reforçados.
- Transformação desse aumento de litigância contra os media numa arma de pressão sobre os jornalistas e as respetivas empresas.
2. O mais extraordinário, contudo, é que esse “reforço dos direitos de personalidade” contradiz sucessivos acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). Portugal tem sido condenado por não respeitar a liberdade de imprensa e o escrutínio jornalístico inerente a qualquer regime democrático, preferindo, ao invés, dar mais importância precisamente àquilo que a tripla Rui Rio/Elina Fraga/Mónica Quintela querem que seja reforçado na lei portuguesa: os direito de personalidade.
E o que dizem os juízes do TEDH, criado por países do Conselho da Europa (organização formada por 47 Estados, incluindo os 28 que compõem a União Europeia), alguns dos quais têm democracias bem mais longas e fecundas que a portuguesa? Três questões:
- Que os titulares de cargos políticos e públicos estão sujeitos a um escrutínio apertado dos media em nome de uma prestação de contas que é devida aos cidadãos;
- Que os políticos e representantes da administração pública aceitam esse contrato não escrito inerente a qualquer democracia quando aceitam os respetivos cargos;
- E que esse escrutínio, que é feito em nome da Opinião Pública, tem uma consequência clara: os direitos de personalidade dos políticos ficam naturalmente comprimidos face à liberdade de expressão e de imprensa.
Esta é a teoria clara para qualquer estudante de direito, mas vamos falar de casos práticos. Como Mónica Quintela diz, e bem, este problema de liberdade de imprensa vs direito ao bom nome só se coloca em processos mediáticos, como — e só para falar dos mais recentes — a Operação Marquês, os casos Universo Espírito Santo, EDP, Lex, Tutti Fruti, etc. etc.
A pergunta que se coloca é simples: porque razão a comunicação social se interessa sobre esses casos?
Resposta ainda mais simples: porque todos esses processos envolvem titulares de cargos políticos ou públicos que estão sujeitos a um escrutínio especial da comunicação social — e que nada tem a ver com o trabalho judiciário ou criminal. Não são os direitos dos cidadãos comuns que estão aqui em causa. São os direitos dos gestores da coisa pública ou de alguém com influência económica e social suficiente para interferir na vida de milhares de cidadãos comuns.
3. Se Mónica Quintela ainda admite uma margem de recuo nesta nefasta ideia de reforçar os direitos de personalidade da oligarquia política e empresarial, há outras matérias em que parece que o PSD já tem um pensamento fechado. Um exemplo: “os prazos de inquéritos, em vez de indicativos, deviam ser perentórios”.
Quer isto dizer que o prazo máximo de um inquérito criminal, com o da Operação Marquês ou do Universo Espírito Santo seria de 18 meses (1 ano e 6 meses), com a possibilidade de tal prazo ser suspenso por 9 meses caso existam, por exemplo, cartas rogatórias expedidas para autoridades judiciais estrangeiras. Só um exemplo: a Operação Marquês iniciou-se a 19 de julho de 2013 e o despacho de acusação foi emitido a 11 de outubro de 2017. Isto é, o inquérito demorou um pouco mais de 4 anos.
Não está em causa a crítica que a porta-voz social-democrata faz aos mega-processos que o Ministério Público tem a tendência para fomentar. Está em causa, sim, é que a aplicação obrigatória de prazos de 18 meses impedirá o desenvolvimento de investigações sérias a crimes muito difíceis de investigar como os crimes de corrupção e outros económico-financeiros em que existe uma opacidade absoluta e circuitos financeiros complexos que passam inevitavelmente por diversas jurisdições internacionais.
Defender inquéritos com estes prazos obrigatórios, significa promover uma justiça formal, com arquivamentos obrigatórios ‘de gaveta’ sem que a verdade material tenha sido esclarecida, como acontecia nos anos 80 e 90. E pior: utilizando inclusivamente os argumentos que José Sócrates e os seus advogados invocam desde 2015.
4. Para quem se apresenta com promessas de “banhos de ética” e uma suposta vontade de reformar o regime democrático de alto a baixo, transformar-se no melhor aliado que José Sócrates gostava de ter não é o melhor cartão de visita para um líder do PS — quanto mais do PSD.
Rui Rio devia defender uma justiça independente e um escrutínio exigente dos titulares de cargos políticos e públicos — e não fomentar uma Justiça de cócoras perante o Poder Executivo e uma comunicação social defensora de uma ideia muito querida de uma certa Direita autoritária: “o respeitinho é muito bonito”.
Corrigido o nome da organização que fundou o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Foi o Conselho da Europa — e não a União Europeia como anteriormente era assumido.
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