A escalada diária de mortos por Covid e os apelos lancinantes dos maiores especialistas fazem um eco terrível em nós. É urgente evitar a todo o custo chegar à situação de “medicina de catástrofe”, de que falou João Gouveia, médico intensivista em Santa Maria e presidente da Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional para a Covid.
A chamada “medicina de catástrofe” é temível por todas as razões e pode atingir qualquer um de nós ou dos nossos, independentemente da idade, do status, da quantidade de amigos influentes, da riqueza acumulada, dos graus académicos, da experiência de vida e do currículo profissional. No dia em que os médicos tiverem que escolher entre quem ajudam a viver e quem deixam morrer, não há estatuto social nem cunhas ou amigos e conhecidos que valham.
“Num sistema de triagem de catástrofe o que se pretende é o bem comunitário ou da sociedade. Aí, quem vai ser triado não é o doente que necessita de medicina intensiva e está mais grave, mas sim aquele que necessita de medicina intensiva e tem maior probabilidade de sobrevida”. Declarou João Gouveia na entrevista recente que deu a Tânia Pereirinha, neste jornal.
Arrepia pensar na falência do sistema e consequente “desistência” dos médicos, independentemente do nosso sofrimento e grau de aflição, mas também da sua vontade de nos salvar. Aterroriza pensar que podemos ser nós (ou os nossos, insisto) a sermos pesados nesta balança, correndo o risco de ver o fiel inclinar-se claramente para o outro lado: para alguém com mais peso que nós, por ter, aparentemente, mais possibilidades de sobreviver.
Diria que no contexto atual não são precisos muitos detalhes para explicar até que ponto a vida humana é frágil e difícil de proteger. A sobrevivência de cada um de nós exige esforços gigantescos, especialmente quando o sistema está à beira do colapso e os profissionais, muitos para lá da exaustão, usam a sua voz e as forças que lhes restam para alertar para o perigo de não confinarmos, de não nos protegermos uns aos outros.
Marcelo, o presidente reeleito graças ao voto de confiança de uma expressiva percentagem de Portugueses, provou ser sensível a esta realidade. Tão sensível que não perdeu tempo com introitos desnecessários e, muito menos, se desperdiçou numa ego-trip de celebração pela vitória ou teceu patéticas louvaminhas à sua pessoa, como fizeram outros. Num contraste evidente com o candidato que o antecedeu no seu discurso final, Marcelo foi direito ao assunto do dia e à maior preocupação do momento: as vidas das pessoas. Dos doentes, de todos os doentes, mas em especial dos que neste tempo têm contribuído para as estatísticas Covid e para a contagem dos mortos.
Marcelo, eleito com quase 61% dos votos, não hesitou em valorizar a vida de cada um, elegendo o tema da vida como prioridade total e imediata. Foi incisivo e coerente, pois todos sabemos como é autêntico o apreço que tem pela vida. E é também por saber isto que 61% dos eleitores lhe deram a vitória à primeira volta e o colocaram no “pódio dos Presidentes”.
Ou seja, conhecendo a pessoa, o político e as suas convicções, quem o reelegeu espera que Marcelo atue em conformidade com aquilo em que acredita, não deixando de tomar uma posição coerente e consequente sobre a lei da eutanásia.
O texto aprovado na especialidade pelo PS, pelo Bloco de Esquerda e pelo PAN, graças à abstenção do PSD, sobe ao plenário para a votação final global marcada para 29 de Janeiro. Daqui a três dias, o cenário de guerra e devastação provocado nos hospitais pelo agravamento da pandemia será o mesmo que tem sido ou, quem sabe, ainda pior. Nessa altura, tal como na semana passada, todos estaremos focados nas vidas que ainda poderão ser salvas, pois essa é a prioridade absoluta de quem cuida e de quem precisa de cuidados.
Salvar vidas, as nossas vidas, devia ser também o imperativo de quem governa, mas a urgência em aprovar a eutanásia em tempo de “guerra” é tal, que revela que as prioridades são outras e chocam de frente contra os princípios de uma esmagadora percentagem de portugueses.
É preciso lembrar que apesar de o PS, o BE e o PAN se terem oposto à realização de um referendo, houve estações de rádio e televisão, bem como grandes media, que decidiram auscultar diretamente a opinião pública e, de todas as vezes que o fizeram, obtiveram o mesmo resultado inequívoco: a eutanásia não é uma vontade popular e muito menos uma urgência para os Portugueses. A eutanásia é uma agenda exclusivamente política e ideológica.
Ora, os partidos que se apressam a fazer aprovar esta lei foram derrotados ou saíram muito divididos destas eleições. Os portugueses que votaram expressaram claramente a sua vontade e, através do seu voto, percebemos que 61% confia e está do lado de quem defende a vida.
Após a aprovação em plenário, no dia 29, Marcelo tem ainda dois poderes: o de enviar a lei para o Tribunal Constitucional e o de vetar a lei. Os que votaram nele, porque o conhecem bem, esperam uma ação coerente com base num raciocínio evidente: “Se sou contra a eutanásia e as pessoas sabem isso e me deram 61% dos votos, não posso defraudar quem confiou em mim.”
A eutanásia é muito pior que uma “medicina de catástrofe” provocada por uma pandemia. É a verdadeira catástrofe da Medicina. Substitui o propósito de cuidar e salvar pelo de desistir, pondo fim à vida.