Já bastava a Itália não reconhecer, na lei, a adopção por casais homossexuais e recusar chamar a isso um direito. No dia 16 de Outubro de 2024, o Parlamento italiano aprovou um projecto-lei que ilegaliza o recurso à gestação de substituição fora do país. O projecto-lei só podia ter sido redigido pelo partido de Giorgia Meloni, o Irmãos de Itália. E os activistas “LGBT e não sei quê mais” entraram logo em transe. Depois da Câmara dos Deputados, que já tinha autorizado o avanço do projecto-lei, foi a vez de o Senado tornar a Itália um alvo da choradeira dos activistas que julgam que o progresso inclui tornar a parentalidade num direito.

O projecto-lei torna a prática da gestação por substituição no estrangeiro punível até dois anos de pena de prisão e multas que vão de 600 mil a 1 milhão de euros. A gestação de substituição, no espaço italiano, já era ilegal desde 2004. A primeira-ministra, Giorgia Meloni, ainda em Abril, considerou a gestação por substituição como uma “prática desumana” e que encara as crianças como “produtos”. Lavinia Menunni, senadora e do mesmo partido que Meloni, disse com convicção que “a maternidade é absolutamente única, não pode ser substituída, é a base da nossa civilização”. E elencou o fim do “turismo de substituição” como um dos objectivos do governo italiano. A mesma senadora opinou, em Dezembro de 2023, que “a primeira aspiração das raparigas deve ser tornar-se mães” e de cumprirem a “missão de trazer crianças ao mundo”.

A 23 de Julho de 2024, a Coligação Internacional Para a Abolição da Maternidade de Substituição (CIAMS) submeteu uma carta-conjunta (a organização é composta por 50 organizações filiadas distribuídas por 15 países) dirigida ao Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a manifestar oposição à definição de “planeamento familiar compreensivo” escolhida pelo organismo das Nações Unidas (ONU) responsável pelas questões populacionais. A CIAMS apresenta-se, no seu website, como uma “coligação de organizações feministas e de direitos humanos fundada em 2018 para combater a exploração reprodutiva”. Este objectivo pode subdividir-se em dois: “terminar com a exploração reprodutiva das mulheres” e acabar com “a comodificação de raparigas e rapazes organizada por uma indústria que tem crescido ao ponto de valer biliões de dólares” até à última década.

Na definição contestada pela CIAMS, a maternidade de substituição é considerada, num relatório publicado, em Maio de 2024, pelo organismo da ONU, como um exemplo ou forma de “planeamento familiar compreensivo”. Para além de englobar a maternidade de substituição como uma forma de planeamento familiar, o relatório deste ano da UNFPA, tal como denuncia a CIAMS, inclui, na sua definição de “justiça reprodutiva”, o reconhecimento do “direito a ter uma criança”. A CIAMS apresenta pelo menos dois argumentos contra esta tomada de posição da UNFPA e, portanto, da ONU.

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Primeiro, a maternidade de substituição vai ao encontro da definição de tráfico humano da ONU, que pode ser encontrada na Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Transnacional Organizado. Mais especificamente, o artigo 6º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW) exige aos estados que combatam a exploração e o tráfico de mulheres, e o artigo 35º da Convenção sobre os Direitos da Criança compromete os países a prevenirem o sequestro, o tráfico e a venda. Ainda, o artigo do Protocolo Opcional para a Convenção dos Direitos da Criança sobre a venda de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil proíbe a venda de crianças, na alínea a do seu 2º artigo.

Em segundo lugar, a CIAMS acusa a UNFPA de contradizer a Convenção de Direitos da Criança, um tratado internacional que visa proteger as crianças e adolescentes em todo o mundo. Segundo a CIAMS, a maternidade de substituição infringe o direito das crianças a conhecer os seus pais e a receber custódia (artigo 7º da Convenção) e o direito a não serem separadas dos seus pais (artigo 9.º da Convenção).

A socióloga alemã Gabriele Kuby, na sua obra “A Geração Abandonada” (cuja edição portuguesa foi publicada pela Princípia Editora em Novembro de 2021), dedica um capítulo à história, à tipologia (existe a fertilização in vitro clássica e aquela que é feita através da injeção intracitoplasmática de espermatozoides) e às implicações do que veio a ser uma nova potencialidade da ciência: “fertilizar num tubo de ensaio um ovócito feminino com esperma de homem”, levando à substituição (cada vez mais evidente, também na minha opinião) do acto de amor pela manipulação técnica num laboratório. A procriação foi dissociada do acto sexual e, agora, a tentação da humanidade para regular a vida e a morte cresceu exponencialmente, abrindo portas para a produção de crianças (só não digo massiva porque a larga maioria das tentativas de fertilização artificial são falhadas). Nunca foi tão banal colocar à disposição dos técnicos de reprodução tantos ovócitos e espermatozoides, técnicos esses que podem, mediante a procura, cultivar, congelar, selecionar, aperfeiçoar (ou editar) e duplicar (ou clonar) o material genético. Nunca foi tão fácil congelar um embrião, colocá-lo num útero de aluguer, torná-lo objecto de investigação, deitá-lo para o lixo e matá-lo, conforme a dinâmica do mercado actualmente notável da medicina reprodutiva.

Nós, assim como Kuby, não podemos deixar de revelar compaixão para com os casais estéreis cujos membros anseiam ser e demonstrar ser capazes de se encarregarem de uma criança. Já menos com as pessoas solteiras ou do mesmo sexo dispostas a comprar o material genético em falta, tendo como resultado inevitável o roubo à criança do seu parentesco natural. Segundo Kuby, se há algo a destacar daquilo que o surgimento da fertilização in vitro provocou, foi a possibilidade, mesmo legalmente reconhecida, de “roubar voluntária e intencionalmente o parentesco a uma pessoa”. A diversidade do parentesco biológico é diversificada e, agora, nós passamos mais tempo a tentar saber de onde viemos, de onde provém o material genético que herdámos e o que subjaz à nossa identidade, que é o sistema familiar. Se já estávamos habituados a ouvir falar dos filhos adoptivos que procuram os seus pais biológicos, mesmo que os seus pais adoptivos amem mais do que os seus pais “verdadeiros”, agora acrescentou-se a confusão criada às crianças geradas com material genético anónimo, tratadas como “um número e uma etiqueta de preço”.

Qual será o sentimento de uma pessoa quando descobre que os seus componentes genéticos foram, um dia, comprados, que cresceu num útero de aluguer e que nasceu de uma pessoa que não era sua mãe. Kuby faz uma comparação pertinente entre o aborto e a fertilização in vitro: enquanto o aborto mata os filhos que não são desejados, colocando em causa o direito à vida, a fertilização in vitro atenta contra o direito da criança aos seus pais biológicos, que está, mais uma vez, reconhecido no direito internacional. As crianças e os jovens perdem quando o ser humano aprende a não sentir remorsos perante a violação da natureza.

A CIAMS, que não é suspeita de ser uma coligação de organizações particularmente conservadora ou, no jargão destes tempos, “anti-feminista”, acusa a ONU (mais vale a pena dizer a organização e não apenas um dos seus organismos) de desobedecer à sua missão e de se fechar numa bolha de opiniões que só refletem solidariedade para com as mulheres e as crianças na aparência. Apesar de reconhecer que uma das intenções da ONU é a diminuição ou eliminação das mortes à nascença, a CIAMS chama a atenção para o maior risco de gravidez das mulheres com “útero de aluguer”, pois são mais vulneráveis a “complicações” que prejudicam “a sua saúde e potencialmente as suas vidas”. Mais uma vez, as observações desta coligação de grupos feministas e da socióloga Gabriele Kuby, que rejeita qualquer associação com o feminismo, estão em consonância. Esta última apresenta, na mesma obra acima referida, seis riscos dos métodos de reprodução artificial ou da gestação de substituição. Falarei de alguns desses riscos.

Primeiro, a exigência feita à mulher de que liberte tantos ovócitos quanto seja possível libertar causa-lhe um desgaste considerável. Na fertilização artificial, o corpo da mulher é forçado, por suplementos hormonais, a produzir mais do que um ovócito, o que pode causar a “síndrome de hiperestimulação”. Estes suplementos hormonais têm, como efeitos secundários, náuseas persistentes, fluido no abdómen, perturbações de coágulos sanguíneos, falta de fôlego, afrontamentos, vertigens, perturbações na visão, depressão, infeção bacteriana dos ovários e danos na bexiga e nos intestinos durante a recolha dos ovócitos. Isto tudo ao mesmo tempo que os ovócitos, assim como o sémen dos dadores, são geralmente congelados e descongelados, sendo que apenas uma pequena porção deles sobrevive.

Depois, quando dois ou três embriões são transferidos para o útero, na condição de a fertilização ter sido bem-sucedida, as mulheres ainda têm de passar por, pelo menos, duas semanas de exames diários e mais injecções hormonais, até que o médico diga que a gravidez ocorreu ou que tudo está acabado porque o embrião morreu. A próxima fase pode ser determinada pela desistência dos pretensos pais ou da capacidade de persuasão das seguradoras, que podem recomendar que se persista. Neste último caso, os horários, a vida íntima, o companheirismo e a sexualidade do casal ficam perturbados pelos tratamentos e pelas indicações do médico.

Outro risco para as mulheres é a probabilidade mais elevada das gravidezes ectópicas na procriação artificial, tendo, como sintomas clássicos, dor abdominal e hemorragia vaginal.

Mas, o fardo não recai apenas sobre as mulheres, como já tivemos oportunidade de ver. O fardo sobre as crianças não é apenas de foro moral e legal, mas também fisiológico, neurológico e psicológico. Na procriação artificial, o risco de aborto espontâneo é substancialmente mais alto. E como podem ser transferidos para o útero diversos embriões, o que aumenta a probabilidade de surgirem no útero gémeos ou trigémeos, a “redução embrionária” torna-se algo a considerar, quando algo não corre como planeado. Então, os “bebés excedentes” são mortos com uma injeção de cloreto de cálcio no coração da(s) criança(s), através da parede abdominal e do útero, sobrevivendo apenas a criança que não foi forçada a receber esse químico. Até ao nascimento, o bebé sobrevivente fica no útero da mãe ao lado do(s) seu(s( irmão(s) morto(s). E, quando este(s) não tivere(m) sido “absorvido(s)”, a nascença tratará de expelir. Descreve-se aqui a trajetória de uma criança que cresceu ao lado do(s) cadáver(es) do(s) irmão(s). Para além disto, um estudo feito pela Universidade de Copenhaga e referido por Kuby concluiu que as crianças resultantes da tecnologia reprodutiva artificial apresentam um “risco de esquizofrenia e de psicose mais elevado, maior susceptibilidade à ansiedade e a outras perturbações neuróticas, como a anorexia, maior probabilidade de sofrerem de perturbações mentais, como a PHDA, e de perturbações do desenvolvimento mental, como o autismo.

A influência de Giorgia Meloni é muito positiva para a Itália, a Europa e o mundo inteiro. Não havendo nenhuma necessidade de concordar com tudo o que o seu governo implementa, podemos contar com ela para enfrentar aqueles que nos querem tornar no cidadão x, no cidadão y ou em plenos números. “E daí?” não é uma atitude que se espere de Meloni, quando a nossa identidade está em perigo. Tal como os liberais de outrora, ela sabe que a esfera do mercado não pode dominar a esfera da família e diluir as raízes nacionais. E, com a aprovação deste projecto-lei, várias crianças e jovens podem sorrir mais vezes. E as mulheres que se costumavam ver como inimigas e seguidoras de causas concorrentes podem voltar a conversar e mudar as suas respectivas casas e vizinhanças para melhor, afavelmente e com sentido de dever. Talvez a rivalidade entre conservadoras e progressistas ou entre feministas e “anti-feministas” possa vir a ser menos visível e mesmo mais vazia, se perceberem o que está em jogo: o bem-estar das mulheres e das crianças. E, com elas, de todos nós. E é assim que Meloni aproveita as oportunidades para recordar que não abandona a minha geração, a geração dos jovens que quer lutar por um futuro melhor e deixá-lo aos próximos.