Mérito é um conceito ambíguo, que depende de vários fatores, pelo que é normal existirem diferentes interpretações sobre o seu significado.

Sistemas de recompensa baseados no mérito individual têm sido os mais escolhidos pelas empresas. Estes modelos ditam que melhores promoções, aumentos, prémios de performance, entre outros, sejam atribuídos com base no mérito de cada trabalhador, assumindo que o mérito é um indicador de fácil medição e o mais justo para todos. Mas será mesmo?

É de concordância comum que a boa performance tem de ser recompensada, não sendo esse o cerne da questão. A grande dificuldade das organizações é garantir que os seus processos de contratação, promoção e atribuição de prémios são claros, transparentes, criteriosos e sem espaço para preconceitos ou estereótipos, mesmo que inconscientes (unconcious bias).

Vários estudos1 foram desenvolvidos no sentido de entender se a meritocracia existe ou se não passa de um paradoxo, uma vez que a maioria das empresas que se assumem como meritocráticas são precisamente as que demostram maior discrepância entre pessoas, que tende a afetar maioritariamente mulheres e outros grupos minoritários. O que estará por trás disto?

Privilégio social, económico e cultural

Não começamos todos do mesmo ponto de partida. Privilégio não é apenas dinheiro, é também uma boa estrutura familiar, um bom círculo de amigos, não ter de trabalhar para suportar os estudos, mas também é não ter preocupação em ir buscar as crianças à escola, preparar o jantar, lavar roupa, passar a ferro e deixar a casa arrumada, tendo ainda de ligar o computador e preparar uma reunião importante no dia seguinte cedo.

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Atualmente, as mulheres continuam ainda a ser as principais cuidadoras de família e responsáveis pelas tarefas domésticas – o chamado trabalho não remunerado. Para além disso, a maioria das famílias monoparentais em Portugal são encabeçadas por mulheres. Ainda que muitos homens já distribuam tarefas com as suas parceiras, sabemos que ainda não estamos lá.

Exige-se, portanto, que a maioria das mulheres seja boa cuidadora e, em simultâneo, excelentes profissionais, sem que qualquer detalhe falhe (em ambas as realidades). Nesse sentido, os critérios da meritocracia devem ser alinhados e sensíveis a cada contexto, realidade que raramente acontece nas organizações.

As organizações não são neutras ao género

A maioria das empresas nasceu quando as mulheres ainda não ocupavam o mercado de trabalho, o que fez com que, de forma natural, essas empresas se concebessem à medida dos homens. Atualmente, muitas empresas já fogem aos processos mais tradicionais, mas, ainda assim, algumas das suas estruturas, políticas e regras continuam a ser tendenciosas (exemplos disso são os despedimentos de mulheres grávidas ou a sua não contratação ou promoção pelo mesmo motivo, reuniões que estendem muitas vezes até fora do período de trabalho, viajar para o estrangeiro recorrentemente como forma de ter mais impacto e visibilidade, etc).

Acontece também que grande parte das empresas tem maior representação de homens em cargos de gestão, pelo que, no momento da tomada de decisões ligadas a performance, existe um preconceito inconsciente de beneficiar quem a si mais se assemelha. Este é também mais um motivo pelo qual é tão importante e urgente que as mulheres ocupem também elas, cada vez mais, lugares de influência e tomada de decisão.

Estes processos meritocráticos podem então acabar por não ser justos, se não forem acompanhados por algo mais, pois não são sensíveis ao contexto em que o mérito pode, ou não, existir. Estas empresas tendem também a confiar demasiado nos seus processos, precisamente por saberem que são meritocráticos, acabando por ficar menos vigilantes a eventuais erros. A solução aqui passa por auditar internamente as empresas de forma a garantir que os seus processos são criteriosos e têm como base a transparência e responsabilidade.

Não existem ainda soluções perfeitas, mas cada vez mais as empresas exploram alternativas a sistemas meritocráticos2, por se consciencializarem que os mesmos nem sempre são os mais fidedignos. É por isso muito relevante que as organizações formem as suas pessoas para uma liderança mais inclusiva, para que novas estratégias possam surgir.

Margarida Gato, licenciada em Sociologia e mestre em Gestão de Recursos Humanos, é Recrutadora na Mercedes-Benz.io, empresa onde tem também dado os primeiros passos na área de Diversidade e Inclusão. Não gosta de estereótipos e tem como missão tornar o mundo um lugar mais inclusivo – fazendo o que pode, por onde for passando.

O Observador associa-se à comunidade Portuguese Women in Tech para dar voz às mulheres que compõe o ecossistema tecnológico português. O artigo representa a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da comunidade.