É um erro interpretar as propostas de menorização do Parlamento que Rui Rio apresentou, como um favor ao Partido Socialista. Como líder da oposição, Rio não está a reduzir o papel da Assembleia para ajudar o Primeiro-Ministro; está a tentar diminuir o poder da Assembleia para quando for Primeiro-Ministro. É, dir-me-ão, uma ideia maquiavélica, mesquinha, que revela os baixos padrões de cultura democrática do atual líder do PSD e uma visão particularmente claustrofóbica das instituições da República. Se mo disserem, meus caros, têm toda a razão. Rui Rio é tudo isso, mesmo que disso pouco se fale. Infelizmente, a esquerda está demasiado entretida a celebrar o facto de Rio não ser de direita e a direita suficientemente distraída com o facto deste quase se dizer de esquerda, quando, na verdade, nada disso importa para o futuro político do país.
Rio, como Costa, é um iliberal. Escrevi-o aqui há dois anos, num texto que apontava as similitudes entre ambos como um risco para o regime. Caindo na tentação da imodéstia, cito: “Desde que Rui Rio foi eleito presidente do PSD que a República vive com um chefe de governo e um líder de oposição não só assumidamente próximos, como perigosamente similares. Este PSD e este PS têm visões pouco saudáveis e bastante semelhantes sobre a recente atuação da Justiça, sobre a liberdade de imprensa e sobre o papel do parlamento. Dito de outro modo: para Rio e Costa, o debate quinzenal é um frete, Joana Marques Vidal é para sair e a culpa das más notícias é dos jornalistas.”
Volvidos dois verões, a profecia cumpriu-se à risca. O debate quinzenal está em vias de extinção, a senhora Procuradora-Geral da República foi posta a andar, as más notícias foram hibernadas com um cheque de 15 milhões de euros e a liberdade de expressão será vigorosamente vigiada pelo Governo, sob o manto do “combate ao discurso de ódio”. Ao contrário, então, do que nos diz a praça e quem a rege, a maior ameaça à nossa comunidade política – à salubridade do debate público, à solidez institucional e à democracia propriamente dita –, não é a radicalização, a rua, a massa, o protesto. Não, meus senhores. Os nossos radicais, como uma observação mais atenta confirmará, mantêm todas as suas pontes com o poder e com o establishment partidário porque, com mais ou menos berraria, são de uma ambição muito mais palpável do que a sua aparente radicalidade. E isso é válido para o Bloco, domesticado e moderado com a “geringonça”, como será inevitável para o Chega, cujo líder tem canal aberto e regular com o seu antigo partido, o PSD.
Não é, portanto, a importação de uma qualquer revolução cultural que ameaça a pólis. O rastilho não vem da teatralidade das franjas; vem de dentro. São as próprias instituições fundadoras do regime – os partidos, em concreto – que se desdemocratizaram. O iliberalismo de Costa e Rio, juntos, separados, pontualmente unidos ou até desencontrados, não irá embora tão cedo e deixará marcas de difícil reversão. Por um lado, porque não têm sucessores preparados. Por outro, porque não têm mais nada que fazer. Independentemente do que acontecer no futuro político português, não há qualquer arranjo ou aliança que assegure um primordial respeito pela separação de poderes, pelo Estado de Direito, pelo escrutínio democrático e pelas liberdades antes, e durante tanto tempo, tomadas por garantidas. As nossas lideranças perderam esse instinto, essa tradição, esse contrato entre si. Se o PS governar com o BE, o iliberalismo estará lá. Se o PSD governar com o apoio do Chega, o iliberalismo estará lá. Se os dois grandes partidos governarem juntos, o iliberalismo estará lá. E Deus nos livre de maiorias absolutas nas mãos de um dos referidos cavalheiros.
O atual governo minoritário dos socialistas e aquilo que o rodeia não representam, no fundo, uma mera ocasião, mas antes um sintoma, uma antecâmara para uma paisagem política em que, à esquerda, à direita ou ao centro, todas as possibilidades serão uma soma de alianças iliberais – de diferença berrante (e inofensiva) e parecença discreta, mas letal. Daqui a uns bons anos, estacionados nas suas cadeiras de baloiço, os contemporâneos perguntarão uns aos outros, fazendo conversa, “qual dos populistas estoirou o regime?”, e uma alma sã e anciã, reencostando-se no seu assento mais agastado, responderá, com um sorriso lúgubre, que “foi o regime que rebentou consigo mesmo”.
P.S.: Francisco Assis foi convidado para presidir ao Conselho Económico e Social. Além de um dos mais distintos intelectuais da nossa praça, é um homem de argúcia e seriedade inquestionáveis. Não havia melhor escolha. Que a Assembleia esteja à altura dela.