Lembram-se da célebre frase de James Madison em The Federalist Papers – “Se homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário”? Lembram, claro. Mas lembram-se do que ele diz a seguir? “Se os anjos governassem os homens, nem controlos externos nem internos seriam necessários. Porém, ao estruturar um governo que deve ser administrado por homens sobre homens, a grande dificuldade reside nisso: primeiro permitir que o governo governe os governados; e, depois, limitá-lo.”

Ora, Portugal tem hoje um dos mais incompetentes governos da sua história recente. Mas pior que isso é que, não obstante as suas proclamações de bondade e virtude, ou precisamente por causa disso, estão mais longe de serem anjos que Rousseau de ser Madison. Aliás, por falar em Rousseau, se há por cá partido que se acha fiel intérprete da volonté générale da plebe lusa, que destrata com a superioridade dos iluminados, esse partido é o PS. E isso faz com que o enorme problema da incompetência deste Governo seja apenas peaners – para citar esse outro grande filósofo da contemporaneidade – comparado com a libido dominandi que jorra, qual nascente de grande rio, no Largo do Rato.

E por falar em Rio, será justo dizer que, qual gémeos siameses, a um dos mais incompetentes governos se “opõe” uma das mais incompetentes “oposições” (assim mesmo, com aspas). Estou a ser injusto? De onde, se não da reciclagem de uma velha ideia do Dr. Costa, é que o PSD se lembrou de propor o fim dos debates quinzenais com o Governo? Não que por ali, no Parlamento, abunde brilhantismo, mas o debate parlamentar não tem necessariamente de ser brilhante. Já o escrutínio, a exigência constante e a exposição permanente do Governo são alguns dos mais elementares mecanismos de checks and balances das democracias. E se cabe à Assembleia da República a função legislativa, que passa menos mal sem estes debates, também lhe cabe a função de fiscalização, que passa muito mal sem eles.

Argumentar com a “deterioração cada vez mais acentuada das relações entre os principais locutores”, ou com a ideia que o debate parlamentar se “tornou um duelo e que esse duelo é fatal” e ainda que “a democracia e os consensos não se conseguem com duelos” – como o Dr. Costa fez quando atacou impiedosamente o então líder do seu partido António José Seguro –, ver o alinhamento do PS e do PSD nesta matéria, e ainda assistir à relegação para a obscuridade no espaço mediático deste tema, diz-nos muito da fragilidade da nossa democracia parlamentar; e é como diz o povo, pode não matar, mas mói.

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E se esta questão tem, fundamentalmente, uma importância central no debate sobre a democracia, tem, circunstancialmente, uma importância incontornável no debate sobre Portugal governado pelo PS.

O PS não é só um partido, é uma máquina voraz com uma insaciável vocação de poder; não surpreende, portanto, que seja o elevador social preferido de alguns que, em circunstâncias normais, nunca passariam do rés-do-chão. Colonizar o Estado com os seus, como aqui sinalizei, é a primeira coisa que o PS faz quando chega ao poder; não só para satisfazer as vastas e fiéis clientelas, como alguns mais incautos podem pensar, mas para eliminar qualquer espécie de atrito ou necessidade de prestação de contas e de contraditório. E é nessa mesma linha que, na primeira oportunidade que tem, se vê livre das vozes e poderes mais incómodos, como procura fazer com a comunicação social e como fez com Joana Marques Vidal.

Mas se julgam que em controlar todos os poderes e anestesiar, ou mesmo calar, todos os contrapoderes se esgota a ambição deste novo PS, estão muito enganados.

Lembram-se do ministro Cabrita nas suas funções anteriores? Quando “recomendou” que uma empresa privada, editora de livros escolares e dependente das escolhas públicas – não confundir com escolhas do público – de manuais, deveria alterar a sua linha editorial, e ela alterou? Deram conta que agora o Governo no lugar de governar, que é a única coisa que deveria fazer e mal faz, se prepara para monitorizar a internet, identificando mensagens e autores? Alguém perguntou com que critérios? Alguém lhe atribuiu essa competência? Alguém lhe descortina o propósito?

E daí, pergunta o leitor menos convencido, o que é que isso interessa à vida dos portugueses? Madison responde, e fá-lo mesmo antes das considerações sobre os anjos que vimos anteriormente. Porque “a grande segurança contra uma concentração gradual dos vários poderes nas mesmas mãos, consiste em dar àqueles que administram cada departamento do Estado os meios constitucionais e os motivos pessoais necessários para resistir a invasões dos outros”. Etéreo? “Pode ser uma reflexão sobre a natureza humana, que tais dispositivos sejam necessários para controlar os abusos do governo. Mas o que é o próprio governo, a não ser a maior de todas as reflexões sobre a natureza humana?”

Em São Bento até podem não residir demónios e a democracia nem sequer estar em risco, mas como anjos não residem com toda a certeza, é fundamental estar permanentemente atento. E era bom que a oposição não contribuísse activamente para a diminuição dessa atenção.