Se qualquer ser humano cometer um crime grave, existe uma punição e a sua liberdade é condicionada. Muitos cidadãos vêm a sua liberdade limitada, não por terem cometido um crime, mas porque nasceram com dificuldades acrescidas. Há pessoas que não escolhem o que querem vestir, comer ou com quem querem estar, o que fazer com o seu dinheiro e onde gostariam de trabalhar ou morar. Nascer diferente é um crime?

Os resultados de sete anos da minha investigação levantaram sérias preocupações relativas à população com deficiência (a que prefiro chamar pessoas com dificuldades acrescidas): violação e desconhecimento dos seus direitos; insatisfação com a sua autodeterminação; grande discrepância entre a qualidade de vida (QV) dos indivíduos com/sem deficiência; e pessoas com mais capacidades estão a ser apoiadas com mais qualidade. Acrescenta-se que a intervenção está mais centrada no desenvolvimento pessoal, não valorizando o que consideram mais importante para a sua vida (autodeterminação, inclusão social e direitos). Quer isto dizer que a escola continua a trabalhar mais as competências académicas da leitura, escrita e cálculo, não valorizando o que realmente querem aprender ou as aprendizagens em locais reais da comunidade (supermercado, correios…).

As pessoas com dificuldades acrescidas não devem ser tratadas como criminosas. Há alternativas! Elas merecem ter autodeterminação, independência e direito a escolher, tal como todos nós. De acordo com os dados da Direção Geral de Estatísticas de Educação e Ciência, em Portugal existem 87.081 alunos com Necessidades Especiais de Educação (NEE). É urgente combater estas atitudes de discriminação desde a escolaridade obrigatória, cumprindo-se a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com deficiência.

O modelo da QV é uma solução que permite criar soluções personalizadas para os alunos com NEE. Afinal, o que é a QV? Este modelo define-se pela multidimensionalidade da intervenção com cada aluno, devendo-se trabalhar múltiplos aspetos das suas aprendizagens, resumidos em oito domínios: desenvolvimento pessoal, autodeterminação, relações interpessoais, inclusão social, direitos, bem-estar emocional, bem-estar físico e bem-estar material. A QV pretende ser transformadora da qualidade do cuidado, numa sociedade ainda baseada no assistencialismo. Trabalhar a QV é acreditar que a equidade e os direitos são iguais para todos os alunos/cidadãos e não só para alguns! É urgente que as escolas repensem a intervenção com os alunos com NEE e promovam os indicadores (objetivos e subjetivos), os domínios e os fatores de QV. A QV existe quando as necessidades específicas da vida de cada aluno são resolvidas e cada um tem oportunidade para participar na sua comunidade e enriquecer as suas experiências de vida.

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As escolas podem prestar apoios personalizados conducentes a melhores resultados pessoais e concretizar a planificação centrada no aluno. A tónica passa por perguntar a cada aluno: o que é importante para a tua vida? Quais são os aspetos que é necessário melhorar? Como é que os apoios podem ajudar nessas mudanças? Isto pressupõe que os agentes educativos planifiquem em função das escolhas dos alunos. O professor pode valorizar a aprendizagem da leitura, mas o aluno querer aprender uma profissão ou simplesmente ter o sonho de poder ir a uma loja comprar uns calções amarelos. Aumentando as escolhas dos nossos alunos, desenvolvemos outros domínios da QV, fomentando a sua independência, participação social e bem-estar. Ao nível internacional, o conceito de QV tornou-se imperativo de uma prestação de serviços de qualidade e de uma melhor compreensão do estilo de vida de cada aluno, conhecendo-se o impacto das características pessoais e contextuais no seu percurso educativo e na vida adulta.

Mas, como se pode medir a QV? A Escala Pessoal de Resultados-Crianças e Jovens avalia a QV dos alunos com NEE, entre os 6 e os 18 anos. Esta escala recolhe as perceções dos próprios alunos (autorrelato), dos profissionais de educação e da família (relato dos cuidadores). Baseada na recolha de perceções múltiplas, proporciona uma forma inovadora para refletir sobre a avaliação, a planificação centrada no aluno e a intervenção baseada em evidências da eficácia/qualidade das estratégias implementadas, cujo foco são os sonhos pessoais do aluno. Em termos práticos, o aluno, a família e a escola são ouvidos, devendo-se sentar todos à mesma mesa para definirem objetivos de intervenção escolhidos na base do diálogo.

Em suma, a QV possibilita um olhar transformador das práticas educativas, acreditar nos talentos pessoais e mudar a visão sobre estes alunos, centrando-se nos apoios necessários para melhorar os resultados valorizados por cada um. Afinal, a QV é um direito de Todos!

Professora finalista do Global Teacher Prize Portugal 2018, docente de Educação Especial, investigadora, formadora e autora
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.