As preocupações que temos são nossas no sentido em que nos atormentam sobretudo a nós, e ocupam o nosso tempo e a nossa diligência. Conforta-nos poder encontrá-las nos jornais, na arte, nas leis, nos filmes e nas conversas das outras pessoas. Comunicamos com o mundo através desse conforto, e é até possível que só exista para mim esse mundo se eu reconhecer nele semelhanças com as minhas preocupações. Reparo sempre com satisfação que um filme fala de mim, e que uma lei me ofende em especial, que a chuva me suja o carro acabado de lavar, e que milhares de pessoas falam do que eu falo e se indignam com aquilo que me indigna.

A fraternidade supõe uma certa quantidade de desgraça, em que pessoas diferentes se queixam das mesmas coisas, e daquilo de que eu me queixo; de pessoas que consideram relevantes as preocupações que eu tenho, ou preocupações muito parecidas com as minhas. Não se deve subestimar o efeito de vermos as nossas dificuldades multiplicadas por cem mil. A realidade é para a maior parte das pessoas um efeito estatístico, e o mundo ganha consistência se num determinado momento as minhas opiniões forem as opiniões de todas as pessoas à minha volta.

Há a considerar neste concerto a diferença entre aqueles que anunciam preocupações colectivas em voz alta e os civis que reconhecem a sua ralação mofina nos assuntos anunciados pelas conversas de terceiros. Os civis são genericamente encorajados a procurar ecos daquilo que os apoquenta; mas quem produz esses ecos faz mais coisas. Não é incomum que imaginem estar a iluminar as vidas dos civis preocupados que lhes prestam atenção. São a parte principal de uma relação complexa entre pessoas preocupadas à procura de pessoas com as mesmas preocupações, e iluminados à procura de pessoas a quem iluminar.

É raro encontrar gente de quem nas suas vidas públicas variadas, atarefadas em anúncios e avisos, não seja possível obter este conforto; pessoas que dêem a entender aos que o procuram que o mundo não se resume ao que os preocupa; e que não nos façam a vontade nas nossas desgraças. É raro encontrar gente que não tenha nada de especial a acrescentar aos nossos interesses, e em quem não encontremos um coro e um eco para as nossas preocupações: é raro haver quem fale de outras coisas.

À primeira vista admira que não haja mais pessoas assim, porque não são precisas habilitações especiais, a não ser talvez uma certa reserva cordial. A importância das pessoas em quem não reconhecemos as nossas preocupações e onde não podemos ver os nossos pensamentos é todavia subestimada. Ao falar daquilo que não interessa a mais ninguém são, como observou alguém com irritação, a alma da nossa condição desalmada. Só essas pessoas é que ainda me lembram que, tendo eu muitas preocupações que me preocupam, o mundo não consiste na soma das minhas preocupações.

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