A notícia de que a Câmara Municipal de Lisboa, ao abrigo de um decreto-lei, enviou para a Rússia os dados pessoais dos organizadores da manifestação anti-Putin, deixou-me perplexo. Como lisboeta habituado a lidar com a burocracia municipal, custa-me acreditar que haja um departamento camarário que, tendo de comunicar certa informação num determinado prazo, cumpra a obrigação em tempo útil. Desta não estava à espera.

Nem eu, nem Fernando Medina, aliás. Por isso é que o Presidente da Câmara anda tão atarantado. Está chocado com a celeridade dos serviços que, recebendo a informação dos activistas russos, a reencaminham para a Rússia NO MESMO DIA – e tenho pena que não possua mais ferramentas de edição além do negrito e itálico, para eu conseguir destacar condignamente este facto. Ainda por cima, parece que não foi um acaso: há um histórico de competência e estas informações já foram prestadas à China, à Venezuela e a Israel.

Esta agilidade autárquica não é habitual. Se isto se passasse no Departamento de Urbanismo, não podíamos contar com esta rapidez. Quando a informação chegasse a Moscovo, já a Rússia era uma democracia. E o mais provável era os activistas já terem morrido. De morte natural, note-se.

Os lisboetas têm dificuldade em perceber a aflição dos activistas russos. Normalmente, o desespero é provocado pela lentidão da câmara em dar informações, não o contrário. Ainda estamos abalados por descobrir o serviço municipal que respeita prazos.

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Minto: há outro serviço que funciona exemplarmente. Trata-se da recolha de resíduos urbanos de grandes dimensões, os chamados “monstros”. Basta descarregar a aplicação, indicar o monstro de que nos queremos ver livres e a Câmara fá-lo desaparecer durante a noite. Fácil, sem perguntas, nem complicações. Quer dizer, agora que penso bem nisso, é mais ou menos o mesmo que fazem com os manifestantes.

Fernando Medina bem pode queixar-se de estar a ser vítima de ataques políticos, mas é indesmentível que, com este caso, começa a ter o seu nome cotejado com o de outros grandes edis da capital. Quando se fala em Duarte Pacheco, pensamos na Exposição do Mundo Português; quando se fala em Fernando Medina, pensamos na exposição de dissidentes russos. A minha dúvida é: depois da morte de Carlos do Carmo, quando Medina escolheu a canção oficial de Lisboa, saberia que o título não é “Lisboa, menina e Mossad”? Se calhar, está convencido de que é autarca da cidade das 007 colinas.

Entretanto, espero que a auditoria que Medina pediu esclareça ao certo o que sucedeu. É preciso, quanto antes, perceber que procedimentos administrativos são estes. Depois, é preciso replicá-los nos outros departamentos. Pelos vistos, há uma forma de conseguir extrair informação da Câmara de Lisboa sem chatices e em tempo razoável.

Vamos supor que o leitor vai solicitar à CML um Pedido de Informação Prévia relativo a uma obra que pretende fazer em casa. Se deseja uma resposta pronta, sem ter de esperar os habituais anos, eis um exemplo de como deve ser redigida a Memória Descritiva que acompanha o requerimento:

“Solicita-se autorização para proceder ao encerramento da marquise na fachada tardoz. Ganha-se 10 m2 de área coberta, que servirão para armazenar cartazes e bandeiras usados em manifestações contra o filho da mãe do Putin.

Também se pretende demolir uma parede interior, ampliando a sala de jantar de modo a poder reunir mais dissidentes chineses nos jantares subversivos que se organizam todas as 4as-feiras com o intuito de conspirar a favor da Democracia.”

Em princípio, uma formulação deste tipo fará a Câmara acelerar o processo. Quando o tema é oposição a regimes autoritários, mais rápido do que a CML a despachar, só mesmo esses regimes autoritários a “despachar”. Os únicos trabalhos de construção civil a que a Câmara de Lisboa dá seguimento com ligeireza são os sapatinhos de cimento que os activistas russos vão ter à espera da próxima vez que voltarem a casa.