Escrevo numa altura em que o país se fecha de novo numa concha. Como quem assume uma fatalidade. 156 mortos contabilizados no boletim de quarta-feira. O número de internados, sobretudo em cuidados intensivos, atinge máximos que colocam o sistema de saúde à beira da ruptura. Muito haveria a dizer sobre como se chegou aqui – e um dia há-de ser dito –, mas agora é como se de novo as energias falhassem para fazer algo diferente.
A dez dias de irmos votar nas eleições presidenciais mais estranhas de sempre, caminhamos derrotados. Depois da breve abertura do Natal, os que costumam ser tão lestos a culpar os portugueses sempre que alguma coisa corre mal, já nem se atreveram a fazê-lo. E os que há nove meses falavam ufanos do “milagre português”, só pedem que ninguém lhes recorde como estamos, nesta terceira vaga, entre os países com os piores números do mundo (se considerarmos o tamanho da população).
Sejamos francos: vamos andando como zombies guiados por quem reconhecidamente tateia o caminho mas mesmo assim cultiva o nevoeiro. Não falo apenas da pandemia, sobre a qual foi deprimente assistir à transmissão em directo do que os “especialistas” tinham a dizer na famosa reunião do Infarmed, tão díspares e sem foco foram muitas das suas intervenções. Falo sobretudo de um país onde a crise económica vai agravar-se e que pode nem estar a perceber o mal-estar político que está a crescer.
Só esvaziando o mais possível a campanha – Marcelo não tem tempos de antena, não tem estrutura de campanha, não marcou ainda nenhuma acção de propaganda – o actual Presidente pode sonhar com o “passeio no parque” para que trabalhou nestes cinco anos de mandato
Em condições normais estas eleições deviam consagrar, sem sobressaltos, aquele que terá quase sempre sido, ao longo do seu mandato, o Presidente da República mais popular da democracia. Mesmo mais popular do que Mário Soares, pois a sua omnipresença e convivialidade permitiram-lhe fazer destes cinco anos uma “Presidência Aberta” quase ininterrupta. Só que onde Soares teve o apoio formal do PSD, Marcelo não teve sequer o apoio envergonhado PS – nem mesmo a promessa de voto do seu líder – e por isso entrou na pré-campanha em modo de espargata: nos debates que tinha com os candidatos à sua esquerda procurava cativar o seu eleitorado (aconteceu com Marisa Matias e João Ferreira), quando terçou armas à sua direita foi na direita que se situou, sem maiores estados de alma.
Só esvaziando o mais possível a campanha – Marcelo não tem tempos de antena, não tem estrutura de campanha, não marcou ainda nenhuma acção de propaganda – o actual Presidente pode sonhar com o “passeio no parque” para que trabalhou em cinco anos de mandato de muitos afectos e ininterrupta presença no espaço público. Nem mesmo a pandemia deveria perturbar os seus planos, pois sempre cuidou de a apresentar com um momento de “unidade nacional”, mesmo quando começaram a sobejar as razões para apontar erros e obsessões.
Pode assim chegar a Janeiro sabendo que era o único candidato para levar a sério, o único que estava ali para ser Presidente, o único que não aparecia no boletim de voto em nome de outras agendas políticas, umas mais meritórias do que outras. Tudo poderia correr sem sobressaltos – mas também sem entusiasmos – se nesta eleição não houvesse um elefante na sala. Ele chama-se André Ventura e, sinceramente, não consigo prever quanta louça partirá.
Já por duas vezes (aqui e aqui) tratei de não desvalorizar o fenómeno do Chega e de contrariar o discurso fácil de se limita a responder à verborreia muitas vezes boçal do seu líder com ameaças de ilegalização ou gongóricas manifestações de nojo. Ao assistir aos debates e às entrevistas de André Ventura, ao ver como reduziu as suas intervenções a meia dúzia de fórmulas de que raramente se afastava, ao verificar que usava a sua inteligência não para esclarecer o seu pensamento, mas para confundir adversários e entrevistadores, interroguei-me sobre o porquê do aparente sucesso desta fórmula. Na verdade não é preciso procurar muito pelas respostas, pois o sucesso dos discursos anti-sistema está comprovado por todo o lado, sejam eles feitos a partir da direita ou a partir da esquerda.
Não é só ser “anti-sistema” que faz de Ventura o elefante na sala. É também ele explorar, à direita, o que já vinha sendo explorado à esquerda: as diferentes crises que polarizam a nossa sociedade, criando nela tensões que nem sempre são visíveis, mas são bem reais.
A surpresa e o que é novo em Portugal é termos um discurso desses a ser feito a partir da direita e com os partidos da esquerda radical manietados pelo seu apoio à solução governativa dos últimos cinco anos. O “sistema” de repente mudou de campo.
Mas atenção, não é só ser “anti-sistema” que faz de Ventura o elefante na sala. É também ele explorar, à direita, o que já vinha sendo explorado à esquerda: as diferentes crises que polarizam a nossa sociedade, criando nela tensões que nem sempre são visíveis, mas são bem reais.
- A crise económica, que tem martirizado muito mais o sector privado nos últimos anos e, de forma muito especial, os micro-empresários e os empresários por conta própria, que não se revêm apenas na descrição de “precários”;
- A crise social, pois o nosso Estado Social não só é débil como cria iniquidades que a população sente como injustiças;
- A crise de identidade, pois a rendição do sistema cultural, escolar e mediático ao politicamente correcto, se cria radicalismos identitários de esquerda, também gera aversões de sinal contrário que, mais tarde ou mais cedo, teriam de ter expressão pública;
- E a crise de representação, criada pela percepção de que o sistema político não é capaz de gerar alternativas, eternizando-se no poder ou nas suas imediações os mesmos protagonistas ao longo de décadas.
Ventura é o elefante na sala que pode repetir frases feitas e ofender a nossa inteligência sem que isso, pelo menos para já e aparentemente, lhe custe votos, porque estas diferentes crises criaram uma legião de eleitores “zangados” que não estão disponíveis para ouvir argumentos, apenas para seguir quem vá “contra isto tudo”. Como Ventura diz que vai.
Por isso o resto, o realmente importante, passa muito ao lado do que realmente se discute. Devo dizer que, provavelmente, a frase que me ficou a bater na cabeça de todos os debates foi a que Tiago Mayan Gonçalves dirigiu a Marcelo Rebelo de Sousa já no final do frente a frente entre os dois, quando lhe disse que iria “terminar seu mandato, muito provavelmente, como o presidente do país mais pobre da Europa”. Ele tem razão, não é improvável que isso aconteça. E recordo esse momento até porque Marcelo, que quase sempre encontrou boas réplicas para desarmar os seus adversários, aqui titubeou e apenas soube falar do bem que nos poderia fazer o dinheiro que agora virá da Europa.
Desejo apesar de tudo que o actual Presidente seja reeleito com uma votação expressiva porque precisamos de um Marcelo forte em Belém para impedir que o garrote socialista se aperte ainda mais
Foi uma triste réplica, mas reveladora. Eu, que desejo apesar de tudo que o actual Presidente seja reeleito com uma votação expressiva porque, como já escrevi, precisamos de um Marcelo forte em Belém para impedir que o garrote socialista se aperte ainda mais, sei que não é por aí. Sei mais: sei que por aí é o caminho do Titanic, navegando impávido e sereno a caminho do desastre, sempre com a orquestra a tocar e todos a bordo crentes na sua superioridade (“somos os melhores do Mundo”, quantas vezes já ouvimos isso?).
Duvidam? Não duvidem, e desenganem-se por mais anestesiados que estejam. Esta terça-feira, dia 12, Portugal já era o segundo pior país do mundo em mortes por Covid por milhão de habitantes, só atrás do Reino Unido, e o segundo pior em casos, só atrás da Irlanda, e sem termos sido atingidos da mesma forma pela nova variante. Foi nisto que se transformou o “milagre português”. Deve ser o mesmo “milagre português” que permite que três candidatos presidenciais tenham ocupado boa parte dos debates a atacar a saúde privada, a exigir chicote e requisições civis, quando a verdade é que aquilo que o Estado paga por tratar um doente Covid no privado é menos do que aquilo que paga num hospital do SNS.
Mas isso não conta. O que conta é o medo da Covid, o medo do Ventura e, no dia seguinte às eleições, o que vai contar serão os cacos que tivermos de apanhar. Vamos ver se muitos ou poucos.
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