1 Em Outubro de 2001, na sequência dos ataques perpetrados pela Al-Qaeda em solo americano a 11 de Setembro desse ano, a NATO invocou, pela primeira vez na história, o famoso artigo 5 do Tratado do Atlântico Norte, através do qual havia ficado firmado, no contexto da Guerra Fria, que um ataque a um dos membros da aliança é considerado um ataque a todos. O Afeganistão foi atacado pela NATO, com os Estados Unidos à cabeça, para desmembrar a Al-Qaeda e matar Osama Bin Laden, responsável e financiador dos ataques de 11 de Setembro, que mataram mais de três mil civis. No início da intervenção no Afeganistão não havia qualquer intenção de state-building no Afeganistão, nem de protecção dos direitos das mulheres e das minorias. Se esses fossem os objectivos, a NATO teria de invadir e ocupar muitos mais países em todo o mundo. Convém relembrar que, na própria noite de 11 de Setembro, George W. Bush dirigiu-se à nação dizendo que não faria distinção entre terroristas e aqueles que lhes dessem abrigo. Foi este o motivo da intervenção.

2 De resto, é interessante recordar os acontecimentos dos últimos 20 anos à luz da campanha eleitoral norte-americana de 2000 para sublinhar o grau de contingência da política. Na altura, Al Gore era o herdeiro de Clinton e do internacionalismo liberal da euforia pós-Guerra Fria dos anos 90, defendendo a utilização de uma política externa forte e intervenções militares no estrangeiro com o objectivo de “espalhar a democracia” pelo mundo. Gore confrontou-se com George W. Bush, acusando-o de ter uma política externa pífia e com tendências excessivamente ensimesmadas, com o objectivo de retirar os recursos americanos do palco internacional. O 11 de Setembro mudou tudo, permitindo a criação de uma coligação de interesses em Washington entre a facção de internacionalismo liberal democrata e os neo-conservadores republicanos, muitos deles vindo da esquerda intelectual desiludida com os anos 60, cuja visão pretendia, acima de tudo, defender a segurança americana e alargar o poder do sector militar.

3 Apesar da guerra do Afeganistão ter tido forte apoio popular, num fenómeno clássico de rally around the flag, lentamente a opinião pública norte-americana começou a alienar-se das guerras sem fim, especialmente depois do início da crise económica de 2008. O terrorismo deixou de figurar entre as preocupações centrais sobre o futuro do país. Não surpreende, pois, que o então candidato Obama tenha reiterado na campanha eleitoral de 2008 que iria não só terminar com as guerras do Afeganistão e do Iraque, assim como fechar a base de Guantánamo. Em 2009, as contingências da política externa obrigaram Obama a gastar não apenas mais dinheiro, mas também mais tropas no Afeganistão. É interessante notar que, já em 2009, o então vice-presidente Joe Biden mostrara o seu dissenso dentro da administração, opondo-se ao envio de mais tropas e advogando, pelo contrário, pela retirada total dos Estados Unidos do Afeganistão.

4 Depois das intervenções da NATO no Afeganistão e na Líbia e da intervenção norte-americana no Iraque (todas fracassadas, de resto), a maioria dos norte-americanos e do mundo percebem hoje que a democracia não se espalha nem se exporta para outros países. A democracia é, sim, o produto da História concreta de cada país e, mais precisamente, de compromissos feitos voluntariamente por várias facções domésticas que escolhem dividir e alocar o poder sobre a sua nação de acordo com determinadas regras. Normalmente, tais compromissos são apenas conseguidos depois de muitas outras formas de divisão do poder terem falhado e de vários ciclos de opressão e vingança se terem desenrolado.

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5 Se a democracia não se exporta, construir um Estado é muito mais difícil do que ganhar uma guerra ou obter crescimento económico. A construção de um Estado é sempre um processo violento de incorporação de populações e elites locais num aparelho nacional, de rasura de certas identidades em relação a outras, de dominação de um ou mais centros sobre as periferias. Foi este processo de construção de um Estado afegão forte e dominante que falhou.

6 Todavia, em 2001, depois da queda de Cabul, os EUA, a NATO e as Nações Unidas desconsideraram este facto e escolheram ser mais optimistas. As Nações Unidas organizaram uma conferência em Bona, na Alemanha, onde estiveram presentes várias facções da política afegã (excluindo os talibãs), para instalar um governo provisório e iniciar a missão de paz e reconstrução. Em 2002, George W. Bush afirmava a necessidade de um plano à semelhança do plano Marshall para reconstruir o Afeganistão, apropriando para isso milhares de milhões de dólares por ano. Em 2004 foi desenhada uma constituição e realizadas eleições democráticas. Em 2009 a NATO pedia aos seus membros para fornecerem recursos “não-militares” ao Afeganistão com vista construir uma sociedade civil. Os EUA desenvolviam por esta altura vários programas económicos com vista a ajudar a população local e a recrutá-la para um esforço de counterinsurgency contra os talibãs. O objectivo é, na expressão repetida vezes sem conta, winning hearts and minds da população afegã, com transferências de dinheiro directas, treino vocacional, fundos para projectos de desenvolvimento ao nível local, empréstimos a pequenos negócios, etc. Claro que, como hoje sabemos, grande parte do dinheiro foi muitas vezes utilizado na grande e pequena corrupção das redes que ocupavam o aparelho de Estado afegão. Durante todo este período, as forças talibã foram, de tempos a tempos, ressurgindo e gerando ondas de violência, obrigando os EUA e as forças da NATO a, mais uma vez (sempre mais uma vez), expandirem ou prolongarem a sua missão.

7 Em 2020, Trump fez um acordo com os talibãs, com um plano claro sobre a retirada dos militares americanos do Afeganistão, bem como a libertação de milhares de guerreiros talibãs presos pelos EUA ou seus aliados. Naturalmente, uma vez estando este acordo em andamento, os próprios talibãs ressurgiram em força, tendo expectativas, um prazo e uma força humana renovada para reconquistar o Afeganistão. O agora Presidente Biden herdou uma situação sobre a qual tinha duas escolhas possíveis: ou saía do país cumprindo o acordado, ou teria de renegar ao acordo, implicando isso mobilizar novamente mais forças militares norte-americanas para enfrentar, com violência e mais guerra, os reforçados talibãs, que se preparavam há mais de um ano para retomar o país. Face a esta situação, Biden, atendendo às suas posições anteriores, decidiu a retirada. Sejamos claros. Ao contrário de Obama, Biden teve a coragem de gastar capital político na retirada de um teatro de guerra onde os objectivos norte-americanos estavam largamente atingidos. Os Estados Unidos haviam conseguido desmembrar a Al-Qaeda e matar Osama Bin Laden. Quanto aos objectivos dos Afegãos, têm de ser os próprios a defini-los. Será difícil argumentar que a presença norte-americana durante mais 20 anos conseguiria fazer aquilo que nos últimos 20 não conseguiu.

8 A opção de Biden foi vista negativamente por grande parte das elites de Washington. Importa sublinhar, contudo, que esta visão negativa não se prende apenas com uma preocupação intrínseca com os direitos das mulheres e das minorias. Há muito dinheiro em jogo, na medida em que todos os think tanks, consultoras, empresas privadas de segurança têm imenso a perder com a saída dos Estados Unidos do Afeganistão. A renda de milhares de milhões de dólares que haviam conseguido extrair dos contribuintes americanos está prestes a esgotar-se. De resto, a opinião pública americana continua a apoiar a retirada norte-americana do Afeganistão, embora a maioria discorde da maneira como a retirada foi feita.

9 No meio de tudo isto, falta perguntar onde anda esse pigmeu político e prosélito das massas sobre os Direitos Humanos chamado União Europeia. Mais uma vez (já são quantas as vezes?), a União Europeia mostra a sua total irrelevância no palco internacional. Isto, claro, enquanto prega ao mundo e ao Sr. Órban as maldades da construção de muros e vai pagando à Turquia para fazer o trabalho sujo de servir de tampão a refugiados, terminando muros na Grécia ou mesmo utilizando ultrassons na fronteira externa para impedir o avanço de refugiados. A hipocrisia é tão bonita, não acham?