Em 1941, em plena Segunda Guerra, o primeiro-ministro britânico esteve incontactável durante seis dias.
Churchill, irremediavelmente irrequieto e devoto ao trabalho e à ação, viu-se privado de correio, sinal de rádio e, naturalmente, telefone. A bordo do navio Prince of Wales, entre desvios, tempestades e perdas de escolta, atravessou um oceano Atlântico infestado de submarinos alemães. Para realizar a viagem, o portador de todas as responsabilidades foi obrigado a delegar brevemente as suas. O motivo para o raro desassomo, no entanto, era urgente. Churchill ia reunir-se pessoalmente com o presidente dos Estados Unidos da América, Franklin D. Roosevelt, na Terra Nova (hoje, costa do Canadá), no convés do USS Augusta. O propósito do encontro não era único, antes pelo contrário, visando não só alterar o desenrolar dos acontecimentos da Segunda Guerra até então, como influenciar e desenhar o seu desenlace e a arquitetura de uma futura paz. Durante a travessia, Churchill leu um romance, jogou gamão e viu um filme diferente todas as noites (não gostou de Citizen Kane), sendo impensável imaginar um líder atual, neste mundo que não para, a gozar semelhantes prazeres a meio de um conflito de escala global.
O Twitter, certamente, não lhe perdoaria.
Quando as embarcações se cruzaram em Placentia Bay, cada uma entoou o hino nacional da outra, à distância, em jeito de saudação. No dia seguinte, celebrou-se uma missa conjunta, com as bandeiras cruzadas sobre o mesmo altar. Roosevelt, segundo o historiador Andrew Roberts, mandou entregar volumes de 200 cigarros a cada marinheiro presente, tratando-se esse de outro pecado que a contemporaneidade seguramente lincharia.
Mas não foi só isso que, entretanto, perdemos, pois não?
Esquecendo o simbolismo, a religião e a tolerância ao bem-viver, há qualquer coisa no retrato desta reunião que parece distante de nós, longínquo num tempo além das oito décadas que passaram. Há qualquer coisa ali, naquela amizade improvável – mas inevitável –, na manutenção da elegância no desespero, no cumprimento entre dois homens e duas nações como se o tempo parasse só para que elas o conseguissem mudar. Há qualquer coisa aí, nessa grandeza, nessa ousadia, nessa convicção em comum, que já não vemos hoje.
Ao documento que emergiu das conversas privadas entre Churchill e FDR – e das negociações entre os respetivos gabinetes – chamou-se A Carta do Atlântico ou, em inglês, The Atlantic Charter. E talvez o seu conteúdo, se citado, sirva de melhor exemplo para a invulgaridade do que ali se passou.
Ora diz assim: “O Presidente dos Estados Unidos e o Primeiro-Ministro, Sr. Churchill, encontrando-se juntos, julgam justo tornar conhecidos certos princípios comuns nas políticas nacionais dos seus respetivos países, nas quais depositam esperanças para um melhor futuro para o mundo”. Os ditos princípios passavam por não procurar qualquer tipo de expansão para si próprios, por assegurar que qualquer alteração territorial corresponderia aos desejos e à liberdade dos povos em questão, por respeitar “o direito de todos a escolherem a sua forma de governo” e pela promessa – solene, marcante, histórica – de que aqueles que desse direito haviam sido despojados pelo nazismo o recuperariam. Para um Presidente que ainda não declarara guerra a ninguém e para um inglês jurado em defender o Império Britânico, o texto é uma obra-prima de cedências à exigência da História. É, numa palavra, excecional. E hoje, dia 14 de agosto, faz 79 anos que foi tornado público.
A visão do transatlantismo, da democracia, da liberdade e desses ideais como indispensáveis para a paz tem aí a sua génese, o seu berço, a sua fundação. À beira de celebrar o seu octogésimo aniversário, oito décadas depois, está na altura de pensar numa nova Carta do Atlântico. Com a arquitetura dessas convicções crescentemente colocada em causa por novos desafios, novas ameaças e pela cruel passagem do tempo, os líderes políticos deveriam preocupar-se menos com a futilidade do seu mediatismo e pensar, quiçá com seis dias de navegação atlântica, no mundo que querem construir amanhã. O que Roosevelt e Churchill nos deixaram durou quase um século. O Atlântico, meritoriamente, continua lá.
E os atlantistas?
P.S.: Sobre os vetos de verão de Marcelo Rebelo de Sousa é-lhe devida uma nota. O Presidente da República chumbou a redução dos debates parlamentares e o aumento do número mínimo de signatários para petições. Fez muito bem. A forma obscurantista como António Costa e Rui Rio têm enclausurado a democracia portuguesa – negociando acordos e medidas à porta fechada, longe dos seus partidos, das suas bancadas e dos seus eleitores – é de uma inconsciência que o Presidente tinha de travar. Subtrair a democracia de si mesma, como o Primeiro-Ministro e o líder da oposição têm feito (veja-se as indicações para as CCDR), é fazer um favor aos populistas que a democracia deve limitar. Que Marcelo seja o único a dizê-lo é grave. Esperemos que não seja o único a pensá-lo.