Em 1950 nascia o primeiro telecomando de televisão. Com fios, pois claro. E assim nascia também o zapping, essa frenética atividade de trocar de canal. E assim nascia a curiosidade de saber o que os espectadores viam, quando viam, quando trocavam de canal e para qual. E assim nasciam as audiências e, como complemento, outros estudos de mercado de consumo de vídeo. Da mesma forma que se atribui à casa Benetton a frase de que a caixa registadora é o melhor estudo de mercado, também na TV, durante muitos anos, o telecomando forneceu às caixas as melhores audiências. Os dados transformaram o meio televisivo como um dos mais confiáveis pelas marcas – ainda hoje. Mas agora o streaming parece trazer nova disrupção a caminho.

Todos continuamos a escolher que programas queremos ver através do telecomando (seja ele uma app de telemóvel, o clássico de 30 e mais botões que todos temos ou outros mais “polidos” e de estilo frugal como o da Apple TV).

Contudo, não convém esquecer como este artefacto afetou toda a indústria televisiva. Até aí, ainda que munidos de uma oferta com poucos canais (em Portugal durante duas décadas foram apenas dois), a troca dos mesmos era penosa:

  1. Levantar da cadeira ou sofá;
  2. Rodar o botão até ao canal pretendido;
  3. Voltar ao sofá;
  4. Repetir de novo todo o processo para nova troca de canal…

A resiliência comandava e não o telecomando. Os espetadores (de manta nas pernas, moleza no corpo…) mantinham-se a aguardar que o programa melhorasse… ou acabasse! Que remédio. Se ao menos alguém ali em casa passasse perto para o gentil favor de trocar de canal… Mas assim que o telecomando ficou nas mãos de milhões, o hábito do zapping foi imediato. À pequena hesitação e vontade de trocar, click!, e mudava-se de canal. As audiências alteraram-se profundamente e, portanto, do lado da criação muito se transformou também. A edição dos programas revolucionou-se por forma a tornar o programa mais interessante e cativante, a escrita procurou em cada página (1 página = 1 minuto) criar ganchos na narrativa para prender o espetador permanentemente, a edição de som evoluiu com o mesmo propósito, tornando a experiência mais imersiva e fazendo esquecer pausas e tempos mais mortos, e os horríveis silêncios… a realização, a apresentação… todos tiveram de se adaptar.

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Ao longo dos anos, portanto, todo esse frenesim de consumo verteu dos telecomandos para caixas de medição de consumo e assim nascia para qualquer programador de televisão a base essencial de trabalho: as audiências. Estes dados são geridos por empresas, como a GFK que depois recorre à Marktest, que tem o software que possibilita ao programador e ao especialista de audiências cruzarem dados, como, por exemplo, quem vê o quê, que idade tem, a que classe social, região, pertence, etc.

No streaming não é diferente.

A título de exemplo, basta lembrar como a Netflix se socorreu dos dados dos seus clientes para ajudar à base dos requisitos que orientariam o processo de criação da série House of Cards, desde a temática à escolha do casting com Kevin Spacey à cabeça.

Só há uma pequena diferença. E não é um pormenor. Mas sim um “pormaior”.

No caso das audiências de TV, os dados entram num sistema partilhado por todos os canais e até agências de meios e de publicidade, entre outros, que a eles podem aceder pagando o serviço; mas no caso dos dados do streaming (Netflix, HBO, Amazon Prime Video, Disney+, TVI Player…) eles são propriedade exclusiva das empresas de streaming.

Se hoje os dados contribuíam para um data lake comum que representava e “ilustrava” a indústria de oferta e de consumo de TV, hoje temos vários repositórios, mas fechados, impedindo alguém de conseguir saber, de facto, o que é o consumo de todos os espetadores.

Hoje, cada vez mais, os dados não são partilhados na indústria. Estão do lado de cada empresa. E a empresa que tem mais clientes e mais dados tem, teoricamente, também melhores dados (debatível, claro, mas como premissa inicial válida).

Vejamos um caso prático:

Decidamos juntos que temos a responsabilidade de escolher os programas para crianças que vamos colocar na emissão da “nossa” RTP2, um canal de serviço público bastante respeitado e com um espaço dedicado à programação infantil que é o “Zig Zag”.

Analisando este espaço, que há mais de uma década ajuda meninas e meninos a aprenderem e a divertirem-se, vemos que nas audiências dos últimos tempos os números na RTP2 referentes ao Zig Zag estão mais baixos. Temos quase uma linha plana, que na escala com outros canais não permite perceber, sequer, as oscilações no consumo ao longo das horas, de tal forma é hoje o consumo residual.

Diremos alguns: sinais dos tempos. Se outrora a criançada e os pais se ligavam aos canais de cabo ou ao Zig Zag, empurrando este a média das audiências da RTP2 para cima, hoje o cenário é o oposto. No caso do Zig Zag poderemos refletir se terão migrado para o RTP Play, a app ZigZag ou a rádio Zig Zag, ou poderemos refletir se migraram para a concorrência do streaming, para o Youtube, Disney+, Netflix. Não sabemos.

Coloquemo-nos no desafio falado: se até aqui conseguíamos analisar o mercado, observando que programas eram mais/menos vistos no Zig Zag e mais/menos vistos no cabo (de novo, pois os dados de audiência são todos vertidos no mesmo data lake), hoje, para sabermos tendências de consumo teríamos de ser capazes de também saber o que veem no Youtube, na Disney, no Netflix, etc, etc. Mas como esses dados são propriedade das respetivas empresas, a tarefa habitual das últimas décadas torna-se hoje incrivelmente audaciosa e difícil (impossível, quase). E sem saber como programar, não posso também saber contra-programar (essa hábil – e várias vezes criticada – arte secular da (des)construção de uma grelha televisiva).

Portanto, também aqui,  os grandes beneficiam da posse de dados mais ou menos representativos de consumo, com os quais conseguem ajustar a sua oferta mais acertadamente. E essa representatividade nem é um tema tão delicado como para os canais generalistas (que ambicionam todos os públicos), estando mais próximos do cabo (focados apenas nos seus clientes especificamente). Desde que os mesmos estejam satisfeitos e paguem a subscrição mensal, tudo bem. Contudo, quem tem menos escala e/ou tem mais dificuldade em aceder a dados de mercado que lhe permita explorar espaços em aberto, terá certamente uma vida difícil para tentar vingar junto de quem já tem dimensão.

Neste novo mundo, ao invés de uma medição generalizada “do mercado” temos mais uma medição de minimercados, fechada, cada um medindo e aferindo o seu ecossistema, sem possibilidade que alguém hoje saiba o que é o consumo de todos.

Como reflexão final, a não esquecer um facto: com mais ou menos dados, de todos ou só da nossa plataforma, não se equivoquem os mais rápidos de raciocínio, pensando que eles resolvem todas as questões. Não resolvem nada. Mesmo para estas novas plataformas que tudo medem, desde o botão de avanço dos 10 segundos ao momento do abandono no vídeo, ou ao thumbnail que melhor funciona para nos levar à escolha, cabe a quem está deste lado interpretá-los, trabalhá-los e extrair deles a mágica resposta que é muitas vezes enganosamente aparente.

Como diz o outro, os dados estão lançados… (não são bem os mesmos, mas passa a imagem).