Há mais de um ano que Portugal e o Mundo se confrontam com uma pandemia de dimensão considerada inédita por muitos, atendendo que nem a história, nem a memória dos mais velhos ensinaram que as epidemias são tão antigas quanto a Humanidade.

Cedo se levantaram as vozes daqueles que levaram uma vida de estudo e de trabalho, preparando-se para uma calamidade desta dimensão, apelando para que, antes de chegarem as maiores e mais temíveis situações, pudesse haver uma resposta capaz, adequada e integrada.

Valeu a existência dos meios de saúde pública e de socorro que o País desenvolveu ao longo de quatro décadas, permitindo que os hospitais, sobretudo os públicos, com os seus profissionais de saúde e com acesso a novas tecnologias, a par de instituições como o Instituto Ricardo Jorge e a Protecção Civil, em rede com o INEM, pudessem exercer a sua acção, da melhor forma possível, tendo como objectivo central a salvaguarda da saúde dos portugueses.

A repetida afirmação de que era necessário estar-se preparado para o pior, esperando o melhor, que o próprio primeiro-ministro, e bem, não se cansou de propalar inicialmente, acabou por ficar, um ano volvido, preenchida por sérias lacunas, quanto à preparação e execução das indispensáveis medidas de combate à pandemia.

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A história do mundo e da medicina vinham alertando há muito tempo para semelhantes ocorrências no passado, e no âmbito militar estas situações são treinadas periòdicamente, quer por razões operacionais, quer por motivos académicos, sendo as respectivas contra medidas devidamente ensaiadas, nunca se podendo descurar os indispensáveis meios de defesa.

Nas Forças Armadas, a resposta a esta preocupação traduziu-se pela organização dos Elementos de Guerra Biológica, Química e Radiológica e pelo levantamento dos modelares Laboratórios de Defesa Biológica e de Defesa Química.

Estes elementos, na linha da frente, constituem-se como contra medidas dos elos de contacto de proximidade e, focalizando a sua acção em ambiente biológico, haveria que contar, na rectaguarda imediata, com um hospital para doentes infectados, órgão indispensável no âmbito da saúde militar, pelos critérios prioritários de integração na respectiva capacidade operacional.

Esta capacidade hospitalar existia desde o início dos anos 70 do século passado, decorrente da construção de um novo bloco no Hospital Militar de Doenças Infecciosas, mais tarde redenominado como Hospital Militar de Belém (HMB), em local separado de outras áreas hospitalares, moderno e bem projectado, com circuitos separados para materiais limpos e para doentes, constituindo-se como o resultado duma decisão lúcida e esclarecida, na época, que enobreceu a história da medicina portuguesa e da saúde militar, em particular.

Paradoxalmente, esta unidade hospitalar militar, em cujo investimento se devem incluir verbas provenientes dos descontos dos Militares para a Assistência aos Tuberculosos das Forças Armadas (ATFA), foi extinta em 2013, por motivos nunca bem esclarecidos, à sombra de justificações meramente economicistas e contra a opinião dos Chefes militares da altura, não se tendo, no entanto, levantado as convenientes estruturas de substituição, eliminando, de modo irresponsável, uma capacidade estratégica, no âmbito da saúde pública, no combate às doenças infecciosas.

Entretanto, em Abril do ano passado, quando a pandemia dava os primeiros sinais da gravidade do seu impacto, um conjunto de destacadas individualidades de vários quadrantes da vida nacional entenderam, como importante e urgente, a reactivação do ex-HMB, tendo em vista o combate à epidemia, aliás em linha com as declarações do próprio primeiro-ministro, em entrevista à TVI 24, a 23 de Março de 2020.

Nesse sentido, endereçaram uma carta ao primeiro-ministro, fazendo um apelo para a recuperação integral do ex-HMB, não merecendo, contudo, qualquer resposta à sua demanda por parte do chefe do governo, num claro sinal de indiferença, senão mesmo de alguma arrogância.

Ao invés, e perante o que se viria a constatar como sendo a catástrofe mais dolorosa que atingiu o povo português, nas últimas décadas, foi dado palco a uma descabida acção mediática, anunciando a instalação de 150 camas num denominado Centro de Apoio Militar (CAM), nas instalações do ex-HMB, para doentes COVID-19 em recuperação/convalescença, e onde a própria instalação de rede de oxigénio foi alvo de polémica, quase não ocorrendo a sua efectivação.

Igual destino não tiveram, contudo, as excelentes e vastas áreas de pressão negativa que o HMB detinha, tendo sido, igualmente, rejeitada a reposição dos gases medicinais e de ar pressurizado que permitiriam a prática de cuidados mais diferenciados/intensivos de ventilo terapia, bem como a recepção de doentes de maior gravidade e em fase inicial da doença, e não quando, já, em convalescença.

Entretanto, é do conhecimento público que foram despendidas verbas superiores a três milhões de euros naquela operação, excedendo, largamente, o orçamento previsto da ordem dos 750.000 euros, conforme declarações do próprio Ministro da Defesa Nacional, para uma redimensionada e redutora capacidade de, apenas, 90 camas para doentes ligeiros ou assintomáticos.

Na fase crítica que o Serviço Nacional de Saúde atravessou, no início de 2021, foram visíveis as dificuldades de tratamento e de recuperação de doentes mais graves, com a exaustão dos cuidados diferenciados/intensivos nos hospitais públicos e privados, enquanto diversos registos vindos a público, por parte de alguns profissionais de saúde a trabalharem no CAM, davam a conhecer que, progressivamente, tinham sido confrontados com a admissão de doentes em estado de maior gravidade e dependência, excedendo, assim, o requisito inicial de convalescentes “assintomáticos ou de sintomatologia ligeira”.

A não reactivação do antigo HMB para o tratamento de doenças infecciosas, no caso presente, para doentes COVID-19, qualquer que fosse o índice da sua gravidade, foi, seguramente, motivo de uma menor capacidade de resposta à pandemia na região de Lisboa, contribuindo para a não recuperação e consequente falecimento de muitos doentes, quer COVID-19, por esgotamento dos meios existentes, quer não COVID-19, por não terem alternativa hospitalar.

Com uma verba inferior à que foi despendida, teria sido e continua a ser possível, garantir a instalação de cerca 120 camas de enfermaria, e 40 ou mais de cuidados diferenciados/intensivos, a par duma conveniente protecção dos profissionais de saúde, nas áreas de pressão negativa.

Acresce que, no decurso de mais de um ano de luta contra a pandemia COVID-19, cujo termo não se vislumbra, para além das polémicas com a administração, gestão e eficácia das vacinas, assistiu-se a um notório aumento do número de doentes recuperados, mas com diversas repercussões clínicas, exigindo reabilitação orgânica, psíquica e motora, com necessidade de avaliação e seguimento, para as quais o ex-HMB poderia dar resposta, se tivesse sido recuperado, oportunamente.

Cumpre-nos, então, por razões de coerência e dever de cidadania, informar os Portugueses sobre o que se passou, recentemente, no ex-HMB, e dar viva voz da nossa indignação pelo resultado final de uma operação de cariz mediático, que acabou por se traduzir, na prática, num depósito de retaguarda hospitalar, com um gasto exagerado de verbas do Orçamento de Estado, a par do desgaste dos profissionais de saúde militar e dos civis contratados.

Foi gastar muito, para pouco…

Persistir no erro, e não tomar em conta, nem as lições aprendidas, nem as preocupações anteriormente expressas em carta dirigida ao primeiro-ministro do governo de Portugal, seria prestar um mau serviço ao País, continuando a colocar em risco, de modo lamentável, a saúde pública e as vidas dos nossos concidadãos.

Lisboa, 15 de Julho de 2021

Os subscritores:

António dos Santos Ramalho Eanes (General, ex-Presidente da República)
Carlos Martins Branco (Major-General)
Carvalho Rodrigues (Professor Catedrático)
Costa Mota (Tenente-Coronel, Pres. AOFA)
Delfim Neto Rodrigues (Adm. Hospitalar, ex-DG Saúde)
Eduardo Mateus da Silva (Tenente-General)
Eduardo Silvestre dos Santos (Tenente-General PilAv)
Esmeraldo Alfarroba (Major-General, Médico Pneumologista)
Fernando Pires da Cunha (Vice-Almirante)
Francisco Sousa Soares (ex-Bastonário da Ordem dos Engenheiros)
Frutuoso Pires Mateus (Tenente-General)
Isabel Freitas e Costa (Médica Pneumologista)
João Almeida Fernandes (Investigador Coordenador LNEC)
João Valença Rodrigues (Médico Pneumologista)
Joaquim Formeiro Monteiro (Tenente-General)
José Luís Pinto Ramalho (General)
José Manuel Castanho Paes (Almirante)
José Rosado Pinto (Médico, ex-Pres. SPAIC)
José Rosal Gonçalves (Médico Pneumologista)
Luís Cristina de Barros (Embaixador)
Machado Lopes (Engenheiro)
Manuel Bação de Lemos (Tenente-General)
Manuel Galvão Melo e Mota (Prof. Universitário)
Manuel Linda (Bispo do Porto)
Maria João Valente (Médica Pneumologista)
Matos Coelho (Major-General)
Norberto Crisante Bernardes (Major-General, Pres. ASMIR)
Octávio Cerqueira da Rocha (General)
Pedro Henriques Nunes (ex-Bastonário da Ordem dos Médicos)
Pires Manteigas (Advogado)