Na fábula do Lobo e o Cordeiro, creditada a Esopo, a moral da história resume-se à impossibilidade de evitar o mal a quem está determinado a cometê-lo. Neste tema do anunciado e concretizado fim do regime do Residente Não Habitual (RNH) tal como vigorou até à presente data, o cordeiro é o Grupo Parlamentar do PS com uma proposta de última hora, e o Lobo, o Governo do mesmo partido, que anunciou o fim do regime (e verteu essa sua intenção na Proposta de OE/24) sem qualquer estudo prévio, ou tão pouco um instrumento credível alternativo de captação de talento e investimento estrangeiro. Com efeito, a redação aprovada pelo Parlamento mantém o regime apenas para sujeitos passivos com rendimentos que resultem de carreiras de docentes de ensino superior e de investigação científica ou de postos de trabalho qualificados no âmbito dos benefícios contratuais ao investimento produtivo do Código Fiscal do Investimento. No fundo, um filho de deus menor, também ele surdo e mudo perante o coro de críticas e protestos.

Curioso que o Cordeiro nesta fábula que é a governação em Portugal rejeitara proposta idêntica, pasme-se, a 20 de setembro de 2023. Nessa altura, o Livre era o Lobo, mas, destituído de peso parlamentar, não conseguiu despir a veste de cordeiro.

Ora, o que veio agora o cordeiro PS aprovar, depois do PS Governo ter anunciado o fim do regime?

Segundo notícias vindas a público, a maioria parlamentar aprovou a vigência do regime para todos os que preencham os critérios de residência e disponham de visto válido até 31.12.23; admitindo, ainda, para todos aqueles que transfiram a sua residência em 2024, a sua inscrição até Março do ano seguinte desde que preencham uma das condições previstas na proposta, nomeadamente: (i) promessa ou contrato de trabalho até 31.12.23; (ii) contrato de arrendamento celebrado até 10.10.23; (iii) promessa ou reserva sobre imóvel celebrado até 10.10.23; (iv) matrícula dos dependentes em estabelecimento de ensino até 10.10.23; (v) visto de residência válido até 31.12.23; (v) ou procedimento iniciado até 31.12.23 para a concessão de visto ou autorização de residência. Este último ponto é particularmente relevante para todos os não residentes na EU, em particular para todos aqueles que estão à espera da concessão de vistos ou fizeram investimentos ao abrigo do Golden Visa, viabilizando o seu posterior acesso ao regime de RNH, o qual poderá ser feito mesmo depois de 2024, valendo nesse caso para o período remanescente dos 10 anos de vigência deste regime.

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Numa nota colateral, a confirmar-se o que foi divulgado, como jurista não posso deixar de manifestar a minha perplexidade com esta nova técnica legislativa que consiste em estabelecer efeitos retrospetivos às normas – neste caso 10 de outubro, data de apresentação da Proposta do OE – como forma de restringir os efeitos de norma inovadora, salvaguardando (pretensamente) o princípio da segurança jurídica. É o lobo de novo a atacar, em vestes de cordeirinho. O que deveria ter sido aprovado seria, simplesmente, salvaguardar a adesão a todos os potenciais aderentes até 31.12.2023.

Outra originalidade de todo este processo rocambolesco reside na circunstância de esta proposta provir de um grupo parlamentar que já não deveria estar em funções. Com efeito, a votação da Proposta de Lei do OE/2024 só é possível devido a uma fraude ou abuso de direito constitucional, que passa pelo diferimento da promulgação do despacho presidencial de dissolução do Parlamento. Com um Governo demissionário, a legitimidade política da atual maioria parlamentar está ferida de morte e como tal o novo OE/24 deveria cingir-se a temas e matérias de mera execução orçamental, deixando temas estruturantes de política pública, incluindo fiscal, para nova maioria parlamentar.

Mas diga-se, tal como na fábula, o mal está feito e não há cordeiro que nos salve. Para muitos investidores, depois da rábula do fim dos golden visa, esta nova trapalhada em torno do regime do RNH mostra que a estabilidade fiscal e legislativa é palavra non grata para o Estado português. Temos sol, temos um país seguro, boa comida e gostamos de turistas. Gostamos menos de investidores, pois com 75,000 aderentes em 15 anos de vigência do regime está encontrada a razão para a falta de habitação no País. Como contribuinte fico mais descansado, ainda que não entenda como é que o IMT não é abolido. Mas pelo menos vamos reduzir 1,5Bi de despesa fiscal e certamente que todos nós (os cordeiros) pagaremos muito menos impostos a partir de 2024. Palavra de Lobo.

Nota final: segundo o que foi tornado público, a revogação do RNH e sua reformulação foi aprovada com a abstenção do PSD. Não sei que alternativa de governação pode ser construída quando o principal partido da oposição assume as vestes de cordeirinho.